17 setembro 2024

Dos incêndios e dos versos

 

Tirado ontem de dentro de um autocarro

Fui convidado para ir ontem ao Porto fazer uma apresentação para médicos, maioritariamente europeus, especialistas em tumores renais em crianças ou adolescentes. Decidi ir de autocarro: apanhava o das 7.30h da manhã, regressaria em cima da hora de jantar - mais barato, moderadamente confortável, sem o inconveniente de uma viagem longa a olhar para a estrada.

O começo não foi auspicioso: num autocarro semi-cheio de gente em silêncio, uma senhora não parava de falar com o seu vizinho do lado, que ela só conhecera naquele momento. Só lhe ouvia o tom de voz e percebia palavras ou expressões como cheiro a mijo ou merda ou cócó. Fosse com o vizinho, fosse com o telemóvel, a senhora não se calava um minuto. À minha mente veio o fado que a Amália cantava: acho inúteis as palavras / quando o silêncio é maior.

Parámos em Leiria. A senhora entabulou conversa comigo fumando um cigarro castanho, potencialmente duvidoso - tu sabes que eu sou muito comunicativa, diria ela ao telemóvel - mas eu já a tinha tomado de ponta. Disse-me: sabe, toda a vida vivi em Cascais mas eu digo muitos palavrões. Não resisti ao remoque irritado e mentiroso: sabe, toda a vida vivi em Cascais e não digo palavrões

Foi então que percebemos que a viagem para o Porto estava periclitante: os incêndios no norte tinham cortado uma série de auto-estradas. E é nessa altura que, fruto de uma situação potencialmente perigosa, com um cheiro a queimado, se cria um micro-cosmos dentro do autocarro: há alguém que se queixa de falta de ar, a senhora dos palavrões empertiga-se e diz: tem uma bomba, você? Eu tenho asma, bronquite e enfisema nos dois pulmões. E ao referir dois pulmões aponta os ditos com a mão, não vá haver gente que não saiba do que ela está a falar. Paramos, fugimos ao trânsito, metemos por vielas estreitas onde há filas intermináveis de carros. Há gente que quer sair, mas a senhora dos palavrões é taxativa: não saia pela sua rica saúde, eu sou doente oncológica e ja dei duas bombadas.

Paramos na zona de Aveiro e somos confrontados com o inevitável. O motorista, enervado e tenso, informa-nos que as autoridades foram claras: o autocarro não avançará mais, tem de voltar para o Estoril. As pessoas têm uma alternativa (gosto quando se diz duas alternativas): ou vão pelos seus meios para o destino ou regressam à origem.

A senhora dos palavrões volta a empertigar-se, perante a irritação geral (já com ela): como assim, sair? Quem é a sua chefe? Sabe que eu tenho 80% de incapacidade? Há gente a impor silêncio, a defender o motorista, a tentar estabelecer a ordem, mas 80% de incapacidade é assinalável, impõe respeito, mesmo que seja difícil perceber em que é que a senhora é incapaz. Despedimo-nos e eu digo-lhe solícito e sorridente, inundado de um alívio pouco cristão e de uma falta de transparência pecaminosa: devia fumar menos, sabe? Ela sorri, faz um passo de dança e, recordada da bronquite, da asma, do enfisema nos dois pulmões (para os quais aponta) responde-me de forma superior, toda segura nos 20% de capacidade: mas não bebo álcool, sabe? Nem tomo comprimidos

10 minutos depois regressava ao Estoril, sem ter feito a apresentação, após 11 horas dentro de um autocarro. No pensamento, as vítimas daqueles incêndios. Na memória, os versos que a Amália cantava:  acho inúteis as palavras / quando o silêncio é maior.

JdB 

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