23 fevereiro 2010

Escuta

Sou sossegado. Coisas do feitio das pessoas, e não há nada melhor que o sossego para nos pormos a pensar nas coisas da gente. Não foi o feitio que me sentou aqui, nesta cadeira quieta, condenado à inércia do corpo. Isso foi a sorte. 

Agora que penso bem no assunto, foi uma sorte eu ser sossegado, que a ser de outra maneira dava em maluco na certa.

Ter uma vida sentada não é, de todo, uma coisa ruim. Descobri uma infinidade de novidades emolduradas na vista de uma janela, e tinha uma infinidade de tempo para cada uma delas, pelo menos até se me apagarem os olhos.

Agora escuto. Todos os barulhos são diferentes, alguns completamente distintos e outros quase idênticos. Aprendi a distinguir o sussurro dos lençóis de seda, tão diferente dos estalos dos lençóis de algodão, ou do abafo dos de flanela. Sei de onde sopra o vento, ora pela corrida das tampas de plástico pelo chão, ora pelos ramos da amoreira, que quando está nortada, em vez de balançarem sozinhos, raspam no beiral de lata. Sei dos amores da Susana, pela cantiga que sai, ou não, da marquise dela. Foi uma sorte eu ser sossegado, que a ser de outra maneira, nunca era capaz de ver com os ouvidos.

Ontem à tarde pareceu-me, que a sorte ditou eu estar distraído com as lengalengas da criançada do jardim-escola, ouvir o meu coração abrandar. Não me detive muito no assunto e só lhe estou a prestar atenção porque hoje acordei muito cansado. Consigo ouvir a quietude gemida dos ossos e o arrastar de cada pulsação. 

Cego, sentado e sossegado, vejo o barulho que o tempo faz quando chega ao fim da sua infinidade. Mais um bocadinho e levanto-me daqui.

ZdT

3 comentários:

  1. Que bonito, ZdT. Triste, mas tão bonito. Adorei a última frase. Obrigada. pcp

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  2. Caro ZdT

    o seu texto é de uma beleza, poesia e sensibilidade indescritíveis - espero bem que esteja a pensar se é que não o fez já, escrever um livro - porque lhe garanto, isso é um dom que não bate à porta de qualquer um apesar de hoje em dia haver dezenas de pessoas com pretensões a escritora a publicar livros sem o menor valor literário que se devia prezar e que por isso mesmo não percebo como é que saem.

    Maria BCC

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