19 março 2010

polaroids de figuras extintas

#3 - filipe

anos a fio, colegas de carteira e de malandrice inocente,
amiguinhos pequeninos com queda para a esperteza matreira,
mas sem ponta de maldade.

anos depois, na vida adulta, tudo importa, filipe - tudo importa.
por isso mesmo, é importante escrever 'sem ponta de maldade',
porque a poesia nem sempre é justa,
mas as mais das vezes a justiça é razoavelmente poética
(só em Portugal é que não, eu sei, mas se vamos por aí,
nunca mais acabamos o poema..).

crescemos, jogámos futebol, catrapiscámos as meninas,
- uma vez, até a mesma, se bem me lembro.
coisa linda esses nossos dias.

mais tarde, divergimos, como quase sempre acontece,
há milhares de livros a explicar a isso.
nunca li nenhum, por dandismo ou coisa assim.

mas, dizia, divergimos, quando os gostos, a cosa mentale,
começam a fazer da suas.
passámos então a ser colegas, companheiros,
mas não mais os preferidos um do outro.
(lembra-me outras coisas, mas adiante.)

mais uns anos passaram, lembras-te da ânsia de lá chegar?
e chegámos, mas o carro não parou, continuou, seguiu viagem,
para nosso espanto e, voilá, disfarçado terror.

tudo importa, filipe - tudo importa. também o terror, como verás à frente.

era fim-de-ano, ainda a juvenília imperava com as suas cores garridas.
na festinha de aldeia, bar do júlio alugado pela comissão de festas possível,
encontro-te à porta, sob a ombreira, mas mais ainda sob aquele céu de chumbo
que a noite beirã por vezes comporta.

estavas bebido, muito. eu estava bebido, um pouco.
anos de intervalo pelo meio e lembrar o que, já nessa altura, havíamos sido.
de repente, sem perceber bem,
abraçaste-te a mim e desataste a chorar convulsivamente.

os passantes, poucos, amigos e ébrios, diziam de nós
'mais dois bêbados! que rica festa! isto está porreiro, pá!',
movidos a cerveja e bebidas espirituosas baratas, decerto.
movidos a juventude e inconsciência, talvez.

mas só tu e eu é que sabemos,
que às 00h01 do dia 1 de Janeiro de um ano qualquer,
nos braços um do outro,
descobríamos aterrorizados
que falháramos ambos a vida.

tantos anos depois, tanta coisa depois, filipe,
e os dois amiguinhos de carteira de escola,
perceberam que

tudo importa. tudo importa.

e que nada mais importa.

(só o terror. e, em dias claros, o amor.)

gi.

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