10 março 2010

Vai um Gin do Peter's?

Na Casa gira do jardim das Amoreiras, onde as paredes das salas estão revestidas com as telas do casal pintor – Mª Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes – inaugurou uma exposição temporária(*) de outra pintora, amiga dos anfitriões: Mily Possoz (1888-1967).

Mily (Emília) era filha de pais belgas, mas começou a sua vida em Lisboa, antes de deambular por Paris, Bruxelas, Düsseldorf, Holanda, para aprofundar os estudos de Belas-Artes. Diferentemente de Vieira da Silva, voltou para Portugal, vivendo entre a capital e Sintra, de forma fixa a partir de 1937. Nos últimos vinte anos de vida, esteve hospedada no Hotel Tivoli, onde pagava em telas, quando havia falta de liquidez… Actualmente, o Hotel guarda um dos maiores espólios da pintora.

O seu talento – integrando o Primeiro Modernismo Português – foi cedo reconhecido, catapultando-a para a ribalta. Almada Negreiros teceu-lhe elogios rasgados! Logo em 1924, publicou um desenho na revista Athena (nº 2) com uma dedicatória muito eloquente: «Para Mily Possoz, o melhor desenhador portuguez do meu tempo.» (sic, Almada). A partir da década de 30, os seus desenhos, gravuras, óleos enchem a paisagem lisboeta e até portuguesa. Quem tenha feito a primária, antes do 25 de Abril, reconhecerá nas gravuras do Livro da 2ª Classe o traço muito rico e feliz de Mily. Na grande Exposição do Mundo Português (1940), a pintora modernista encarregou-se de inúmeras decorações, que agora se podem apreciar nos estudos para o Biombo japonês.

Talvez a temática pueril – com meninas, flores, gatos e ambientes saídos de contos de fadas – por um lado, e o gosto pelos trajes regionais portugueses, por outro, a tenham tornado numa ilustradora apetecível para o SNI. O facto é que a artista se evidenciou no antigo regime e hoje parece votada a um certo esquecimento, ficando-se pelo acervo distribuído pelo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, Hotel Tivoli e colecções particulares.

Percebe-se que, sobretudo a partir dos anos 40, para uma certa agitação de massas, urdida pelos grupos da clandestinidade política, a satisfação serena das figuras de Mily terá redundado num contratestemunho desagradável! Mas não há qualquer benefício em imiscuir as lutas político-ideológicas na livre expressão artística de cada um… Ao menos, em nome da liberdade !

Por mim, aderi logo ao traço muito sensível de M. Possoz, com extraordinário sentido decorativo, festivo e sóbrio, em simultâneo. Tudo parece simples, mas adivinha-se um trabalho intenso de desbaste, depuração e muita estilização, até atingir uma beleza hiper delicada e assim fixar os contornos das figuras. Respiram saúde e vitalidade, os meninos campinos que habitam as telas. Imanam doçura e jovialidade as meninas que posam à janela. Os olhos maravilhados com que Mily vê as minhotas, assegurar-lhes-ia um contrato imediato com a exigentíssima agência Elite! Imaginem a Giselle Bündchen de arrecadas, para terem uma ideia! Os milagres na composição da imagem, em que hoje são pródigos os fotógrafos mais cobiçados do jet-set, esbanjou a Mily, generosamente, ao retratar a gente anónima, que nada mais lhe deu senão uma torrente inspiradora para a desenhar linda e feliz.


No seu mundo pictórico reina uma alegria suave e colorida, uma bondade subtil, uma estética diáfana, atractiva, feita de harmonia. O olhar, muito aberto e expressivo das suas figuras, jorra confiança e gosto de viver. Parecem quase imobilizadas num estado de comunicação pura com o espectador, como se bastasse serem e estarem! Se há qualidade evidente nas personagens de Mily é terem “atitude” ! Transbordam de atitude! Até nesse sentido respiram modernidade.


Talvez a sobriedade pacata, aparentemente ingénua, da sua obra nos possam iludir acerca da grandeza que reconhece na vocação artística. Mas na carta que escreveu (1941) à sua amiga, Mª Helena Vieira da Silva, nessa altura a viver no Rio, deixa bem explícita a missão cimeira que atribui à arte: «Para nos compensar d’este flagello (ciclone que tinha assolado Lisboa e Sintra) tivemos agora a exposição do Almada e aproveito para lhe mandar o lindo catálogo. Foi a melhor exposição d’este anno – cheia de lições para todos – uma vida de Artista com toda a sua coragem e convicção de Arte e de verdade (…)» (**) Esta declaração rectilínea e depurada, bem ao jeito da pintora, vem ao encontro da definição de poeta, dada no estilo hiperbólico e passional de Florbela Espanca: «Ser poeta é ser mais alto, é ser maior / Do que os homens! (…) É ter cá dentro um astro que flameja, / É ter garras e asas de condor! / É ter fome, é ter sede de Infinito

Em Mily há zero de uma certa melancolia lusa ou de alguma insatisfação anímica, cantada nos fados, onde perpassa uma tensão trágica. Entendamo-nos que esta observação em nada diminui o fado! Apenas se visa sublinhar o estilo admiravelmente radioso dos seus desenhos, de uma leveza flutuante.

Aqui fica este aperitivo para a exposição formidável, patente na Fundação
Arpad Szenes-Vieira da Silva, com pena de não ter conseguido postar também as gravuras espectaculares dos bustos (Desenhos /Estudos académicos).

Interior de um atelier

Boas descobertas no atelier da Mily,

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(*) Patente ao público até 20 de Junho, na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva – Praça das Amoreiras, nº 56.
Horário de Segunda a Domingo – 10h00 às 18h00. Encerra à Terça e feriados. Entrada gratuita ao Domingo de manhã: 10h-14h.
(**) Excerto do original da carta, na exposição.

9 comentários:

  1. Que deliciosa visita virtual, MZ! Gostei imenso. Quadros encantadores, concordo completamente com a tua descrição. Not my cup of tea... mas isso não interessa nada. São representativos dela (Milly), em primeiro lugar, e depois duma época importante nas Artes Portuguesas(o Modernismo). Têm semelhanças com os quadros da Sarah Affonso, não têm? Nem que seja em termos de temas: festas populares, gente sã, minhotas, peixeiras. Mas o traço é modernista, realmente. Menos naif, do que sei, do que os da Sarah Affonso (que, aliás, acabou por pintar muito pouco...poderia concerteza ter ido muito mais longe). Belo tour virtual. Bjs. pcp

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  2. Concordo plenamente com as suas pertinentes observações.
    fq

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  3. Concorda com quais observações, fq? As minhas ou as longas e detalhadas da Maria Zarco? Obg. pcp

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  4. Desculpe perguntar, fq, mas é que no fundo estamos a falar (a MZ e eu) da mesma coisa, temos a mesma maneira de encarar (ou o mesmo gosto) pela artista. Acho eu. pcp

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  5. Desculpe, PCP, só agora vi a sua pergunta!
    Estava a referir-me ao texto principal, sobretudo na abordagem que faz do conceito de "liberdade" (palavra que, com sabe, tem dado para quase tudo).
    Mas também subscevo o seu comentário.
    fq

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  6. Obrigada. É, tem razão. Continue a ler a Maria Zarco. Vai sempre aprender qualquer coisa... conheço-a há muito e sei do que estou a falar. Ou seja, é a minha opinião .... Obrigada pela sua resposta. pcp

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  7. Obrigada. É, tem razão. Continue a ler a Maria Zarco. Vai sempre aprender qualquer coisa... conheço-a há muito e sei do que estou a falar. Ou seja, é a minha opinião .... Obrigada pela sua resposta. pcp

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  8. Fui pouco rápida a resopnder aos interpelativos e simpatiquíssimos comentários, a propósito da exposição da Mily Possoz. E peço desculpa à PCP e à FQ pela falha. Comentaria só o seguinte, na comparação mto boa que a PCP fez com a Sarah Afonso - pelo meu lado, parece-me que o maior contributo da Mily é o efeito muito decorativo das suas composições. Tive pena de não conseguir também postar uma minhota esplenderosa, que pertence ao Hotel Tivoli -- tem qualquer coisa de ícone! Obrigadíssima pelos vossos contributos e interesse,
    Maria Z.

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  9. Maria Zarco, concordo, em pleno!!, com as considerações à obra de Mily Possoz, e que incitam a uma visita obrigatória à exposição da “casa gira” (uma ternura, o nome!);


    Recueei, bastante (… já posso dizer…), no tempo, a uma época em que, apesar da tenra idade e uma ainda maior ausência de mundo, olhava fascinada os seus desenhos nos ditos livros de estudo… pelo carácter inovador da composição e firmeza de traço, tão expressivos e diferentes do que habitualmente povoava o meu quotidiano.

    Um gr beijo, Maria Zarco - sempre didáctica, crítica, espirituosa… uma lição para todos!


    Catarina L V

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