05 janeiro 2012

Nota dissonante


Numa decoração obcecada pela simetria seriam o elemento que a desfaz. Num jardim pintado de verde esmeraldino seriam o destaque do vermelho sanguíneo. Numa biblioteca ornada de lascívia e sensualidade, seriam a secura da literatura puritana. Naquela festa eram a nota dissonante no meio de uma homogeneidade óbvia, porque o caminho social de quem convida pode ser calcetado pela diversidade mais improvável.
Hit the road Jack and don't you come back no more, no more, no more, no more.
Aos primeiros acordes da música muitos se lançaram à dança, abanando os braços, abrindo sorrisos, contorcendo pernas, lançando cabelos ao vento da agitação delirante, porque os corpos pedem movimento, as tensões requerem libertação, os maus humores merecem bálsamos a ritmos frenéticos.    
Hit the road Jack and don't you come back no more, no more, no more, no more.
Paulo agarrou Alexandra pela cintura e rodopiou pela pista, indiferente ao mundo, aos outros convidados, à exiguidade do recinto, ao espaço alheio, a uma certa convenção que exige gestos moderados. Afastavam-se, aproximavam-se, juntavam os rostos até não caber uma folha de papel bíblia entre uns lábios pintados com cor escura – os dela – e uns encimados por uma pilosidade desfasadamente juvenil – os dele.
Hit the road Jack and don't you come back no more, no more, no more, no more.
As mãos sabedoras de Paulo percorriam as costas franzinas de Alexandra que se oferecia às pernas que se tocam sem pudor, aos peitos que se esmagam num fervor rítmico, às coxas que meneiam numa sensualidade pecaminosa. À toada batida do cantor o casal respondia de igual forma, perante uns convidados que se afastavam como quem dá espaço à lascívia, à paixão, ao arrebatamento, à diferença ou à prudência, porque a manifestação pública do amor pode provocar sentimentos contrastantes de  incómodo e inveja.
Acabaram por sair a meio da noite, talvez porque a nota dissonante se tivesse tornado demasiado evidente ou porque, quem sabe, tivesse chegado o tempo da carnalidade que pede um local recatado, um par de velas com aroma de baunilha, uma nudez quente e uma música cheia de frases bonitas. Abandonaram a festa de mãos dadas, numa cumplicidade feita de indiferença e provocação. Ainda os viram a entrar num Toyota amarelo onde se vislumbrou o início de um beijo húmido e prolongado.
Atravessaram a ponte encaminhando-se para sul. Quando entraram em casa, uma cave triste, num prédio triste no fundo de uma rua ainda mais lúgubre, já não havia palavras entre ambos. Cada um seguiu para o seu quarto num silêncio absoluto, ainda que fortemente transpirado. Alexandra, contabilista numa empresa de aluguer de roulottes em Paio Pires, sentou-se ao computador. Tinha deixado a meio um chat com um brasileiro que, do Recife, lhe dizia frases tórridas carregadas de uma sexualidade dengosa. Ele, Paulo, vendedor de soluções informáticas para microempresas, eterno vencido na luta contra o acne persistente, ligou dois computadores: num, jogou uma simultânea de xadrez com um jogador turco, um mongol e um peruano; no outro, acedeu a um site de filmes pornográficos onde todos os intervenientes eram cegos.
Hit the road Jack and don't you come back no more, no more, no more, no more.
JdB

2 comentários:

  1. Só o JdB para escrever estes contos improváveis.
    Continuo a lamentar que não faça disto um execício habitual e sistemático.

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  2. Gostei muito deste aperitivo.Parabéns!
    Fico mais dependente do resto...
    Beijinhos

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