23 março 2012

like a broken umbrella (in memoriam do nosso rapaz)



embalado pela chuva minuciosa de Borges,
pela lacrimejante poesia do José Miguel Silva,
(viva o cosmopolitismo poético, viva!)
pelas bátegas de saudades que caem copiosamente,
podia desatar a escrever poemas,
reacender o rastilho que ensopado
deixei muito lá atrás,
nesse tempo em que ainda.

em tua memória e dos teus conselhos,
não o farei, contudo.
lembro, ademais, toda a minha lógica quebrada
que gritava contra a usura do tempo
e a ferrugem dos nossos dias, enquanto tu
me lembravas uma lição básica da vidinha:
nenhum desespero substitui a dor,
antes amplifica-a, até à exaustão.

era outro tempo, outro século,
esse em que nos aconchegávamos, mui masculinamente
encafuados no carro que calhava, queimando sonhos e cigarros,
sonhando as índias que nunca chegaram.

hoje, solitário cavaleiro andante, perpetuo a tua memória,
sabendo que esperas por mim, nesse algures inominável,
a última cartografia absoluta que resta.
estas palavras, sim, estas palavras, eu sei,

são um cenotáfio ridículo erguido na tua ausência,
à falta de melhor – que seria sempre um acto de amor concreto,
tornado agora impossível nesta geometria terrena.
(a minha poesia morreu contigo, penso não raro.)

e é enredado nestas vielas cheias de amargura
que me lembro do teu sonho de menino de teres
toda a colecção Dois Mundos, da editora Livros do Brasil.

não tínhamos dinheiro,
como hoje não nos temos um ao outro,
mas éramos felizes, a sonhar com livros e namoradas e futuros.

embora não o soubéssemos, era sempre de amor que falávamos,
um amor fraternal e desmedido como já não se usa.
ficámos no museu das coisas extintas, querido amigo,

acompanhados por tanta gente outrora vivente
como estas palavras que, daqui a segundos,
me morrerão nas pontas dos dedos, enquanto

enxugo este meu coração-filho-da-outra
mas pai de tanta coisa que felizmente sai à mãe
- ou a uma luminosa e improvável ideia de mãe.

saudades, pá. saudades.

e este nosso telemóvel brother to brother
agora calado para sempre,
bem por dentro do meu peito.


gi.

7 comentários:

  1. beleza e simplicidade engrandecedora de uma amizade eterna. Porque será que nos faz tanta falta esta partilha?
    mais flores gi

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  2. Boa!! Welcome back, gi! Espero que não seja só um "one off"! Bjs. pcp

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  3. Gi,

    Que agradável surpresa!

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  4. olhe gi,

    Ele há coisas...depois de ter comentado a sua escrita, soube da morte de uma grande amiga. Roubo-lhe as palavras e dedico-as à Luz.

    "embora não o soubéssemos, era sempre de amor que falávamos,
    um amor fraternal e desmedido como já não se usa.
    ficámos no museu das coisas extintas, querida amiga."

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  5. Cara Ana,

    Não podendo fazer mais, pense nas minhas palavras - cada uma delas - como um abraço.

    Perdi um amigo-irmão, após 33 anos de cumplicidade, fraternidade, solidariedade, amizade - uma espécie, sim, de Amor.

    Infelizmente, desta vez, não é um poema metafórico - é um requiem, um blues, um cenotáfio por quem partiu e, contudo, por quem nunca esteve em mim tão vivo.

    Que a luz e a Luz permaneçam ambas em si.

    Os meus sentimentos e as minhas flores,


    gi.

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  6. Um beijo grande para os dois. Peço desculpa pelo meu tom light de há pouco. Mas quis saudar efusivamente o regresso (espero) do gi. Tenho muita pena que este poema se aplique a duas situações trágicas e tão próximas. pcp

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  7. Obrigada gi
    mas é sempre "aliviador" quando podemos roubar a expressão do sofrimento aos outros. Foi o que eu fiz. Pena tenho de não poder fazer o mesmo por si.

    Obrigada pcp e aplaudo a sua saudação por sei que todos sentimos a falta do gi.

    Agradeço também ao dono deste estabelecimento. Sem ele não nos cruzaríamos e é a sua sensibilidade que nos chama a revelar aqui algumas das nossas fragilidades

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