18 dezembro 2012

Crónicas de um universitário tardio

O semestre está a chegar ao fim e, com ele, começam os trabalhos finais. Mais do que ter uma boa nota, interessa-me saber se consegui aprender algumas das muitas coisas que me foram ensinadas. Ontem entreguei o exercício de Ficção Breve. O desafio? Redigir, no espaço máximo de uma folha e meia, três semi-coisas: um texto subordinado ao título a marquesa saiu às 5 horas, a caracterização de um personagem e uma recensão. Partilho convosco as duas primeiras partes. O que achará da minha aproximação um escritor galardoado (Mário de Carvalho) que já foi reconhecidamente comunista?

JdB

 A Marquesa saiu às 5 horas


História:
Para Duarte havia dois aspectos fundamentais que caracterizavam o ser humano: o catálogo de valores e a eficácia da acção. Nestas duas dimensões residiam, segundo ele, o que verdadeiramente contava na peregrinação do Homem pela Terra. Quando o inquiriam, respondia sem um instante de hesitação:
O respeito pela nobreza e pelos compromissos assumidos. O resto são derivações menores destes pilares estruturantes de uma conduta séria.
A nobreza, e quanto mais antiga melhor, assegurava, seria o repositório insubstancial das leis que regiam a ética, o respeito pelos mais desfavorecidos, a relação entre as partes, o bem comum. O modo de agir nas suas várias vertentes – eficácia, gestão, cumprimento – eram a materialização da ideia, uma espécie de extensão física de um pensamento elevado.
Aquela dia de Maio nascera limpo, o que para Duarte era um presságio de felicidade. Gostava da claridade, da transparência, da possibilidade que lhe era oferecida de ver mais ao longe. No fundo, como se o vasto campo da meteorologia fosse uma alegoria para o seu gosto pela genealogia, e a linha do horizonte, que jamais se alcança, fosse uma fiada de antepassados cujo início se perde na antiguidade.
Olhou a marquesa pela primeira vez. Comoveu-se com a perfeição das suas formas, encantou-se com um requinte que lhe pareceu raro e elevado. Ousou tocar-lhe mas conteve-se, como quem tem a noção exacta do momento em que tudo deve acontecer, porque o contacto físico abre caminhos inexplorados. Sorriu contente. A nobreza estava ali representada - não a nobreza de carácter, que mais não era do que uma expressão vaga para enganar tolos, mas a nobreza do sangue, da aristocracia, dos filhos de algo, da elegância dos costumes que só o berço proporciona.
Foi despertado pelo som do telefone que reproduzia o Land of Hope and Glory, uma música que lhe parecia superior.
Sim, sim, fala da editora Sangue Azul. Tal como estava previsto há 8 meses, o primeiro número da revista sobre nobreza europeia saiu à hora prevista. A Marquesa saiu às 5 horas.

***
Perfil do personagem:
Duarte é um homem de 1,75 m, com um cabelo liso preto penteado com esmero e óleo de castor, um hábito e um stock herdados do seu Pai. Anda com pequenos passos; tem umas mãos magras mas que oferecem um aperto firme e de olhos nos olhos. Tem um apelido vulgar ao qual dobrou uma consoante, ciente da importância de uma certa patine no aridez do cartão de cidadão.
Licenciado em História, tornou-se monárquico e genealogista por equívoco. Numa das primeiras aulas na universidade, um professor exibiu um olhar-farol pelo anfiteatro e proferiu em voz grave: entre o preconceito do dinheiro e do nome – e fixou-se na direcção de Duarte – prefiro o do nome. O estudante sentiu o episódio como uma epifania e só muito depois percebeu que ao seu lado se sentava, por trás de um nome corriqueiro, um dos herdeiros da nobreza portuguesa mais antiga. Era tarde para recuar, atingira o ponto de não retorno nas opções de vida. Procurou as suas origens e esbarrou no final do século XVIII numa paróquia do norte, cujos assentos de baptismo arderam por causa de um padre fatigado e fumador.
A criação da revista, mais do que um negócio, é um apostolado.

3 comentários:

  1. Muito bem! Parabéns! Vale a pena o investimento.
    Beijinhos

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  2. O final, totalmente surpreendente, arrasou-me por completo. Eu dava-lhe 20 Valores Plus. Se tiver uma nota abaixo dos 18, é porque o professor morre de inveja da sua criatividade.
    Partilhe connosco a nota, sff, quando a receber :-)
    Maf

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