09 janeiro 2014

Das coisas desaparecidas

Imaginemo-nos numa cidade sem carros para que se facilite toda a circulação pedestre, mantendo embora a toponímia e a sinalética: nomes de ruas ou de vielas, zonas de estacionamento, limites de velocidade, indicações de restaurantes, de farmácias ou de museus, de miradouros com vista sobre o mundo. Imaginemo-nos agora a percorrer a cidade entrando de rompante pelos sentidos proibidos. Serei mais arrojado, sugerindo que se percorra a cidade circulando - apenas e só - pelos sentidos proibidos. Uma espécie de conhecimento da urbe por via da proibição, como se avançássemos sempre contra o tempo e contra o vento, de face para a manada que vem em sentido contrário, colocando o barco da nossa vida numa bolina tão cerrada quanto possível. Como veríamos a cidade?



Há quem se constitua pelo presente das coisas reais, conjugando o verbo existir no tempo adequado: eu existo, tu existe… as coisas existem. Outros constituem-se pelo futuro, pelos objectos que se inventarão, imaginando cenários e confortos práticos, vislumbrando onde cai a bola que atiramos na direcção do devir. Há aqueles, mais raros e, sobretudo, mais proscritos, que se constituem pelo passado e pelo que desapareceu, como se o mundo não fosse mais do que um espaço vazio de onde se evaporaram artigos estéticos, modos de vida, plenitudes espirituais, vagares da existência. Como se o momento presente fosse constituído pela invisibilidade das coisas que fazem falta e Jano, o deus romano das portas e das passagens, olhasse sempre para trás. Como é conhecer esta urbe, por onde deambulamos, por via do que já não existe?

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Em 2008, José Tomás Román Martín, de Galapagar, Madrid, toureou em Barcelona. O touro, a quem deram o nome de Idilico, foi indultado, e o matador saiu em ombros.
Os tempos e as vontades locais feriram de morte a corrida de toiros. Em Barcelona foi assim. Dizem-me que foi a televisão a cores que, revelando o sangue, fez sobressair em nós sentimentos que estavam escondidos por um ecrã a preto e branco onde ele não se via a jorrar ou a empapar uma arena. Talvez o espectáculo já seja anacrónico, cruel, desadequado, revelando uma faceta bárbara que eu estranhamente também tenho.
Barcelona 2008. Uma cidade que conheci e onde as corridas de toiros desapareceram. Uma cidade onde será mais difícil ainda explicar-se a emoção de uma faena e o indulto de um toiro.



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Faço arrumações. Rasgo fotografias, releio cartas manuscritas, tacteio menus em papel elegante com que a TAP nos brindava em voos para Londres. São os mortos, os desaparecidos com uma indemnização e um jantar de despedida, os indiferentes das reuniões de Guernsey ou de Paris onde se discutia medicina e logística, os pequenos luxos aeronáuticos, as caligrafias que se decifravam e revelavam. Foi tudo substituído pela eficácia, pela rapidez, pelo efémero, pelo excesso de reticências ou de pontos de exclamação, pelo saquinho de pretzels, pela brevidade de quem não tem tempo a perder, porque é preciso remunerar o accionista.

O que desapareceu deste mundo faria um mundo igual e paralelo. Resta saber se com mais encanto.


JdB

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