04 junho 2015

A sabedoria do Raposão *


Puxara de uma cadeira de baloiço

não muito baloiço, porque não gostava daquele exagero de vaivém para a frente e para trás como se estivesse num mar desgovernado

e abrira o Para Sempre do Vergílio Ferreira, naquela toada persistente e ritmada a falar na Sandra, na Xana, nas tias velhas, na mãe que numa cama do asilo tartamudeava frases que ninguém entendia. Leu uma dúzia de linhas, talvez menos, e pousou o livro no colo, os óculos no pescoço e deixou-se possuir por aquilo que estava à sua volta: o ruído ritmado do torniquete que humedecia a relva para que esta resistisse à secura persistente do ar, o aroma da terra queimada que anunciava a renovação, o cantar dos pássaros escondidos nas ramagens altas das palmeiras.

De olhos fechados, a cara esparramada ao sol morno de Agosto, sorriu uma, duas, três vezes. Aconteciam-lhe estes sorrisos quando o seu pensamento fugia numa associação que os outros nem sempre percebiam, de forma que era altura de deixar de os partilhar. Eram pensamentos aparentemente extemporâneos, desfasados do que parecia ser a realidade que se vivia naquele preciso instante, como se um cozinheiro de estrelas consagradas entrasse numa sopa dos pobres e requisitasse ingredientes exóticos - e só ele percebesse porquê.

Lembrou-se do Eça, d’ A Relíquia e do Raposão que, numa vontade enganosa de agradar à Titi,

e era preciso dizer sempre que sim à Titi

trouxera da Terra Santa madeirinhas aplainadas por S. José, orações para vésperas de lotaria e para gavetas emperradas.

Todo o homem, dizem, tem uma mente que é um aparador, minado de gavetas de cima a baixo onde se arrumam ideias, partes da vida, organizações, sentimentos, vontades, funcionamentos mecânicos, prazos de pagamento. Tudo está arrumado, ao que parece, de uma forma separada, por género, cor e feitio, para que possam ser usadas sem misturas perniciosas à boa eficiência dos actos em questão, para que os afectos não colidam com os funcionamentos mecânicos, os sentimentos com os prazos de pagamento.

Olhou para o aparador que era o seu e invejou o Raposão, malandro e bajulador que já sabia, ainda que de uma forma intuída, a importância de um bom abrir e fechar de gavetas: um movimento fluido, suave, sem esforços, sem agressividade com a peça de mobiliário que guarda tudo o que nos vai no raciocínio e na paixão, no impulso e no pensado. Raposão não era um crente fervoroso e via, no Criador, o concorrente mais directo à herança daquela que cheirava a formiga de sacristia. Mas trouxera orações, como quem pensa que na dúvida…

Também ele, com o Vergílio no colo e o cantar dos pássaros ao fundo, tinha as suas orações para gavetas emperradas, encravadas, torcidas, que provocavam esforço demasiado para fechar, como se os assuntos que lhes dissessem respeito custassem a resolver, a guardar num arquivo suspenso ou sine die, algures entre o activo e o morto.

Abriu os olhos, pegou no livro e leu a última frase do capítulo XIV: o silêncio dentro de mim. Ao seu lado, um jornal local falava no desafio da liberdade. Sorriu pela quarta vez, com a impressão de um serendipismo claro, e com nítida sensação de que numa parte qualquer do seu corpo - não sabia se coração, cérebro, entranhas da alma ou vísceras que por vezes se nauseavam - uma gaveta anunciava, tenuemente mas sem empenos inultrapassáveis, que chegara a altura de começar a fechar.

Adeus, até ao meu regresso...

(Nota: texto publicado neste estabelecimento em 22 de Agosto de 2008)

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