02 outubro 2015

Em que parte da tua vida...

Um dias destes bebia uma cerveja de fim de tarde com um amigo. Falámos de viagens e eu contei-lhe das minhas, algumas completamente sozinho na Europa. E ele, que me conhece bem, perguntou-me: em que parte da tua vida enterraste esse espírito aventureiro? Olhar para trás pode ser tudo: saudosismo, saudade, insegurança, horror ao futuro incerto. Mas pode ser a procura da resposta para a pergunta: em que parte da tua vida enterraste o que foste? 

A carta abaixo (que encurtei) foi escrita há 8 anos. Sei de onde me saiu o impulso para a escrever, sei de que amigo falo ou que amiga cito. Não a reli com atenção, mas considero a hipótese de que alguém me faça a pergunta: em que parte da tua via deixaste de ser este? Ou que me digam: não mudaste um bocadinho...

JdB

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Meu querido amigo,

Há alguns meses – lembras-te? – jantámos em casa de amigos comuns que partilham connosco visões semelhantes da vida, princípios e opções basicamente iguais. Havia à volta daquela mesa um menor múltiplo comum que nos unia a todos: a família e a ética, os valores morais, a honestidade que não se negoceia, a preocupação pela geração vindoura.

A dada altura falámos sobre o que faríamos se o ar que respiramos nos fugisse das mãos no prazo de seis meses, deixando-nos, no entanto, a saúde e o dinheiro para gozarmos esse período.


Estarás recordado que de início muitos de nós mencionaram o prazer, as viagens, o aforrar de divertimento para futuros nenhuns. Depois, pouco a pouco, como se a nossa condição de crentes falasse mais alto, este gozo tão desmedido quanto possível foi dando lugar a uma preocupação mais espiritual de preparação para a eternidade em que todos, cada um à sua maneira, acreditam. Talvez resumisse a minha posição, face à eventualidade de viver apenas seis meses, numa frase que me disse pessoa que estimo muito, ainda que nesta definição caibam interpretações múltiplas:
 tentava deixar a casa arrumada.

Gosto da ideia porque ela encerra uma posição muito abrangente. Na realidade, o que é
 arrumar a casa? É deixar o futuro dos filhos garantido? Precaver a inexistência de dívidas? Gizar investimentos de médio / longo prazo com o rendimento mais favorável? Beneficiar os que cá ficam com um recuerdo da nossa passagem por esta terra?

Arrumar a casa é, seguramente, tudo isso. Mas, atrevo-me a dizê-lo, é também regularizar a nossa relação com os que nos rodeiam, não deixar uma lista longa de créditos mal parados nas relações sociais e familiares, sentir que partimos ao cair do último dia do último mês e que de volta do nosso corpo inerte se juntam todos os que connosco se cruzaram: os que nos amaram e os que nos odiaram, aqueles para quem fomos um vestígio de indiferença militante ou uma lufada de amizade sempre fresca, aqueles que remetemos para um olvido tingido de desprezo ou que privilegiámos com o calor do nosso abraço.


É a segunda vez que, face ao teu repto da luta e da não desistência, da resignação e do combate, te contraponho a palavra paz.


Talvez a nossa verdadeira luta, aquela a que não nos devemos resignar, de que não devemos abdicar seja, realmente, a da arrumação da nossa casa: ir fechando as gavetas das incompatibilidades, das caras que se voltam para não verem, das ruas que se atravessam num repente de disfarce, no ódio que nos consome as entranhas, nas raivas que sempre nos azedam, nas faltas de paciência que diminuem o próximo, na mágoa que sentimos por quem julgamos ter-nos prejudicado, esquecendo, tantas vezes, que talvez estejamos na génese de tudo.

Já pensaste no desafio que seria se todos nós tivéssemos a possibilidade – nem que fosse uma única vez na vida – de sermos confrontados com os últimos seis meses da nossa existência e não com uma esperança de vida estatística que nos permite ir adiando o
 arrumar da casa? Numa visão simplista das coisas, talvez este desafio pudesse ser o mais importante de todos, porque aferiria a qualidade da última refeição a que todos têm direito: não os condenados à morte por males infligidos, mas os sentenciados à vida pujante, completa, intensa e verdadeira. Toma lá seis meses. O que vais fazer com eles?

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