19 julho 2016

"Só Ficar" (um post para a Raquel)

Penso que já terei escrito algo sobre este aspecto das minhas férias de juventude: durante alguns anos, talvez dos 13 até aos 24 ou 25 passei férias regulares em casa de amigos e primos no Alentejo. Era Setembro, e a casa enchia-se de gente, do cheiro a petróleo que substituía a electricidade, da emoção dos cigarros fumados às escondidas, do odor a sopa de cação ou de beldroegas, da música ouvida num pick-up a pilhas ou dos devaneios adolescentes de uma ida a Badajoz. Lembro-me de me perguntarem o que fazíamos lá durante um mês. A minha resposta repetia-se com a monotonia que advém das convicções: nada! E é por isso que é tão bom.  

De facto, não havia grandes actividades, para além do pingue-pongue, dos jogos de gamão ou das idas à terra local ver a novela ou passear um bocado, das excursões a Vila Viçosa pendurados na boleia que substituía os carros inexistentes. Usando uma conjugação verbal já aplicada neste estabelecimento, estava-se. No fundo, ficávamos, e nada havia de mais feliz nessa dimensão de aparente inactividade. Não estávamos obrigados à agitação, não queríamos agitação para além daquela que já tínhamos. Queríamos algo que não se ligasse obrigatoriamente ao frenesim, à necessidade de programas diários, à agitação do corpo ou da mente. Estávamos,  e isso dava-nos - ou dava-me, pelo menos - uma tranquilidade enorme e uma felicidade cujas razões só tarde percebi. Queríamos estar, porque encontrávamos nessa realidade aquilo que cada um precisava, ditado pela ingenuidade ou pela necessidade do subconsciente. Aquela casa era o nosso mundo. Ou era o meu mundo. 

A Raquel da Camara, a viver actualmente na Índia e casada com alguém que sabe bem do que falo, escreveu um post que vale a pena ler aqui

(Em bom rigor, todo o blogue vale a pena ser acompanhado.)

Mas o post - aquele post específico - tocou-me em duas partes do cérebro responsáveis pelas memórias: uma mais antiga, a cavalo da qual recuei mais de quarenta anos, e uma mais moderna, que me levou ao Zimbabwe em 2008. E talvez me tenha ligado ainda, nesta ideia de ligar aspectos aparentemente distintos da vida, ao evangelho de domingo passado em que Cristo diz esta frase importante: Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas, quando uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada. A história da Raquel passa-se em Moçambique e relembra os miúdos que apareciam em casa dela e que lhe respondiam Kungokhala (uma palavra que em Chichewa quer dizer "só ficar") quando ela perguntava o que queriam.

A África que eu conheci (semelhante à África de que a Raquel fala) é, de certa forma, o meu alentejo de há 40 anos e onde a história da Raquel poderia ter-se passado. Gente que fica apenas, porque encontra nesse verbo, que traduz uma realidade física de imobilização da alma, a dimensão que lhe dá tranquilidade. Ficar não é andar de um lado para o outro, perdido nas agitações de uma marta inquieta e preocupada e que, como encontrei num blogue, não entende que a urgência é tantas vezes uma distracção disfarçada de prioridade. Ficar é ficar, é assentar os sentidos no essencial, não andar distraído, a fugir para a frente, iludido com a ideia da eficácia ou da eficiência ou da actividade permanente. Mas ficar é, também, escolher o sítio onde descansar da ansiedade dos dias. Há, em África ou no Alentejo, uma dimensão de lonjura geográfica, de vastidão da natureza que nos atira para a lentidão das coisas, como se o mundo se regesse por verbos conjugados no gerúndio. Quero ficar e quero ir ficando é, acima de tudo, uma metáfora que nos rege uma parte da vida. 

Durante um mês, se me perguntassem o que estava eu a fazer naquele alentejo da minha infância, eu diria Kungokhala. Hoje, passados 45 anos desde a minha primeira ida, continuo a dizer a palavra noutros sítios, com outras pessoas, noutras dimensões. Mas a realidade é esta: entre a palavra e o desejo de uma casa que é o nosso mundo há um fio de cabelo.  

JdB

1 comentário:

  1. Profundamente agradecida é como me sinto por levar além fronteiras este conceito, kungokhala, que aprendi há onze anos em Moçambique e que vai ficar para toda a minha vida. E admiro mesmo a forma como escreve e a profundidade com que escreve. Tive de partilhar no FB, assim como o post sobre o anjo da sua vida, apesar de saber que não é "praticante" desta rede social.

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