20 janeiro 2017

Das termas




Há um poema de João de Deus, intitulado "Boas Noites", em que, segundo Miguel Tamen na conferência de ontem, nada acontece. Uma lavadeira e um caçador cruzam-se, desejam-se boas tardes, e trocam banalidades. Talvez ele não encontre a perdigueira que perdeu, talvez seja melhor procurar uma costureira (os versos só têm duas rimas, em "or" e em "eira"); despedem-se, desejando boas noites - boa noite lavadeira, boa noite caçador. Ouvido atento à conferência de ontem referiu o facto de talvez se ter passado algo, porque os versos começam com boas tardes e acabam com boas noites

O par de fotografias acima foi tirado em instantes diferentes - quantos já não me lembro. Talvez cinco minutos, dez. Em bom rigor tanto faz, porque a ordem destes factores é arbitrária. Tal como no poema de João de Deus, nada parece acontecer: umas termas ao calor do sol, pessoas que se sentam nos bancos ou nos muretes, mais ao longe, não retratado, gente que forma uma fila para beber uma água benfazeja que sai de uma fonte. Lá dentro, um mundo próprio: as dores, os chás, as refeições equilibradas, o tratamento personalizado por parte do pessoal: dona francisca, como vai o fígado? Senhor meirelas, não o via há um ano... , as vidas saudáveis, os corpos sofridos que acreditam num jacto de água que faz milagres, na ingestão de líquidos certos a horas certas para curar males da pele ou do baço ou do cólon que anda irritado. 

A ordem das fotografias é, repito, irrelevante, mas essa irrelevância pode suscitar uma multitude de interpretações em torno de dois elementos comuns e fixos - um banco e uma mulher. Há uma idosa e um senhor que não se sentam em simultâneo, embora seja óbvio que ambos têm uma relação com a senhora do casaco de cabedal e calças brancas. Quem está a mais na fotografia?

Umas termas são um micro-cosmos, porque revelam a fragilidade das pessoas: um intestino preguiçoso, uma tosse permanente, uma azia que não desaparece. Há um convite ao desabafo, ao desalento mas, também, ao elogio - que bonita que está a sua pele, dona jaquelina... Há um convite à partilha, às ausências certas para o jacto de água, para a água rica em minerais ou em sais, para a fisioterapia. E há, por fim, um convite à dúvida: vem ter comigo ao banco do pátio que a minha mãe às 16.30h tem a sua sessão de ginástica geriátrica e podemos estar sossegados. Queres que te esfregue as cruzes? Ou, no extremo quase oposto, nunca gostei do teu marido e o teu pai, que deus tenha, também não. O que vem ele cá fazer hoje? Deixa-me ir para dentro, que é hora da água sulfurosa e ao menos esse mau cheiro faz-me bem...

JdB 

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