16 maio 2017

Mi Buenos Aires Querido (III) - Corrientes 348 (só para gente com um lado nostálgico-kitsch forte)


Para o meu Pai. 

Qual a diferença entre a minha augusta pessoa e tantas outras pessoas que andam pelo mundo? Não é a minha bondade ou a deles, seguramente superior à minha, que nos separa; não é o índice de massa corporal, em mim muito superior ao que seria desejado; não é o meu beatério ou a minha tentativa de esmerada educação; não é, tão pouco, o meu jeito para as letras, apesar do curso de engenharia. O que me distingue também não são as fixações, obsessões e coisas de igual jaez que todos têm. O que me distingue da turba alucinada (vejo a turba judaica alucinada, frase pascal de autor que desconheço) é o facto de eu as revelar e os outros não, porque acham que é sinal de doença mental ou desequilíbrio dos humores internos, e o mundo é feito para os sãos, porque só os outros têm problemas sociais, de (in)estabilidade psíquica, de manias desconformes... A diferença está, tão somente, na candura com que exponho as minhas estranhezas.

Disse aos meus companheiros de viagem a Buenos Aires: quero ir a Corrientes, 348. Quero forçosamente ir a Corrientes 348. A explicação, afirmei-lhes eu perante a perplexidade evidente com que escutaram a minha fixação repetida ad nauseam, é simples: trata-se de um tango que ouvi pela primeira vez há muitas décadas (quatro? cinco?), quando o meu pai trouxe um LP de um conjunto chamado Los Cinco Latinos. Passados tantos anos - e tantos anos sem ouvir este tango específico - sabia-o quase todo de cor e cantava-o com denodo e desafinação. Depois da primeira quadra, que não se percebe o que lá está a fazer, surge a frase mágica: Corrientes, 348, segundo piso ascensor...  

O número 348 da Avenida Corrientes, uma das principais artérias de Buenos Aires, era, há 40 ou 50 anos, um local, uma pastelaria, parece-me, frequentada pela alta sociedade porteña. As senhoras e os senhores iam de chapéu, de luvas, de elegância no traje e de educação na conduta. Pela noite as senhoras recolhiam ao remanso do seu lar, talvez comendo dulce de leche e dando bife de chorizo aos filhos, enquanto os cavalheiros subiam ao segundo andar onde outras senhoras - menos elegantes, quiçá... - trocavam favores de índole sexual por pesos argentinos e entusiasmos frustrados. A história foi-me contada por um taxista apreciador de Saramago; um homem, dizia ele, comprometido com o movimento social. 

Deixo-vos com um toque nostálgico-kitsch. Para gente forte como eu, que tem fixações delicadas e de entendimento difícil fora do âmbito de um divã de psiquiatra. 

Olvidou-me dizer que estive em Corrientes 348. É, desgraçadamente, uma entrada de garagem, mas o desejo de memória manteve duas portas originais a ladear o portão moderno, portas essas conspurcadas pelo movimento poluidor de viaturas que entram e saem. No segundo piso, imagino eu, os amanuenses locais sonham com cocktail y amor que já não há, substituído pelos objectivos do mês e pelas avaliações de desempenho. O mundo não se tornou um lugar melhor.

JdB


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