25 outubro 2018

Vai um gin do Peter’s ?

TRAFICANTE DE ESCRAVOS CELEBRA, COM ARTE, O SEU ARREPENDIMENTO

A história de John Newton (1725-1807) começou da pior maneira. Nasceu em Londres talentoso e petulante, disposto a tudo para somar poder e fortuna. Enquanto oficial da Marinha Real, especializou-se na arte de navegar em alto-mar, logo se revelando apto a percorrer as mais ousadas rotas marítimas. E havia muitas para velejar, ao serviço do Império Britânico – superpotência dos mares, no século XVIII.

Movido pelo dinheiro fácil e rápido, transitou para a marinha mercante, alimentando o comércio esclavagista. Na costa de África, os europeus compravam aos nativos os prisioneiros das guerras tribais e dos raptos, entre mulheres e homens saudáveis, em troca de armas, açúcar, têxteis e outras mercadorias que encantavam os chefes africanos. Os traficantes da Europa assumiam, assim, a segunda fase do processo, com o transporte intercontinental e a venda no destino, cabendo a fase inicial da captura e da primeira transacção aos próprios africanos.


Destacou-se também pelo contributo dado à abolição da escravatura

Nos barcos negreiros, a «carga» humana podia chegar a 600, arrumados em fileiras paralelas e acorrentados. Viajavam em condições infra-humanas, a ponto de um quinto morrer nas travessias, apesar da perícia da tripulação, interessada em garantir-lhes a sobrevivência para maximizar o negócio. Apostavam, por isso, em viagens céleres, aproveitando os ventos favoráveis.

Numa dessas travessias atlânticas, a embarcação de John Newton quase se afundou, açoitada por uma tempestade especialmente violenta. Nos instantes em que se ausentou do convés, viu o marinheiro que o substituíra ao leme ser atirado borda-fora pelas vagas enfurecidas  a varrer o navio de rés-a-lés. Sem hesitar, voltou a assumir o comando, ciente do risco de vida que todos corriam. Teria uns 25 anos. Contou, mais tarde, que aquela hora difícil lhe dera plena consciência da sua extrema fragilidade, por um lado, e do rumo errado da sua vida, por outro. Inspirado nos ensinamentos que lera, anos antes, no livro de T. Kempis –  «Imitação de Cristo » –  não só resolveu abandonar o horrendo tráfico humano, como se converteu profundamente, lançando-se nos estudos para se tornar pastor anglicano.


«Naufrágio de navio de carga», Joseph Mallord William TURNER, c.1810.
Museu Gulbenkian. 

Na reviravolta da sua vida, foi como pároco (ora em Londres, ora em Olney) que J.Newton compôs os versos lindos de «AMAZING GRACE». Corria o ano de 1773 e o louvor à graça da Vida, do perdão, da benignidade marcou o sermão daquele dia de Ano Novo. Era difícil começar melhor o ano: 

Amazing grace (1), how sweet the sound 
That sav’d a wretch like me!
I once was lost, but now I'm found;
Was blind, but now I see.
’Twas grace that taught my heart to fear,
And grace my fears reliev’d;
How precious did that grace appear,
The hour I first believ’d!
Thro’ many dangers, toils and snares,
I have already come;
’Tis grace has brought me safe thus far,
And grace will lead me home.
The Lord has promis’d good to me,
His word my hope secures;
He will my shield and portion be,
As long as life endures.
Yes, when this flesh and heart shall fail,
And mortal life shall cease;
I shall possess, within the veil,
A life of joy and peace.
The earth shall soon dissolve like snow,
The sun forbear to shine;
But God, who call’d me here below,
Will be forever mine. 
When we’ve been there ten thousand years,
Bright shining as the sun,
We’ve no less days to sing God’s praise

Than when we’d first begun.

John Newton, proferido em 1773 e publicado em 1779 no «Olney Hymns» (Londres, W. Oliver)


A música original do pastor perdeu-se sem deixar rasto, pelo que a ária muito feliz, que veio abrilhantar o hino do inglês, foi composta pelo americano anabaptista William Walker (1809-1875), quase um século depois, inspirando-se em duas canções do folclore nacional. À época, os versos de Newton gozavam de enorme popularidade no Novo Mundo, onde eram designados epicamente por «Great Awakening», em pleno recrudescimento do cristianismo nos EUA, nos idos de oitocentos. Por isso, o poema musicado ascendeu, num ápice, a ex-libris da cultura cristã norte-americana, tanto protestante como católica. Aos poucos, fundiu-se com a identidade nacional e assim chegou aos nossos dias, com reforçada carga patriótica para a generalidade dos norte-americanos. Não por acaso, é escolha recorrente nas bandas sonoras de Hollywood.

Em pleno século XX, a versão enriquecida pela pauta de Walker reentrou na Grã-Bretanha pelo Norte, onde lhe foi acrescentada a orquestração escocesa à base de gaita de foles.

Talvez pela força das palavras, ganha especial sentido ouvi-lo entoado pela voz humana. Nesta versão, a cappella, sente-se a intensidade do clamor dos homens, a dispensar suporte instrumental. A trama polifónica poderosa sustenta a sequência dos solos. Também o estilo modesto e bucólico se coaduna com a simplicidade de «Amazing Grace» (à parte do final publicitário escusado):




A segunda versão é igualmente imperdível, até pelo cenário da noite romana, no interior da colunata monumental do Coliseu de Roma, à meia-luz dourada em que os italianos são mestres. As vozes de Il Divo contam com gaita de foles e kilts genuínas:



O poeta pastor – que canta à Graça que o trouxe em segurança para o levar a casa no fim dos tempos e à palavra do Pai que sustenta a sua esperança – escolheu para epitáfio aquele instante que lhe revolucionou a vida, na noite mais tenebrosa e, de seguida, mais transfiguradora da sua existência aventurosa: «John Newton, uma vez um infiel e um libertino, um mercador de escravos de África, foi, pela misericórdia de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, perdoado e inspirado a pregar a mesma fé, que ele antes se tinha esforçado muito por destruir.» Talvez seja esse eco de lealdade e de vontade de se reerguer a bem, que impregnou «Amazing Grace» de uma bondade indizível e vitamínica. Vem do fundo do coração para nele voltar a ressoar como um eco esperado. 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta-feira)
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(1)  Tradução adaptada do célebre poema do londrino John Newton:
 
«Sublime graça! Como é doce o som, 
Que salvou um miserável como eu! 
Estava perdido, mas agora fui encontrado, 
Estava cego, mas agora vejo.
Foi a graça que ensinou meu coração a temer, 
A graça aliviou meus temores; 
Quão preciosa essa graça se mostrou 
Na hora em que comecei a acreditar!
Por muitos perigos, labutas e armadilhas 
Eu padeci na minha jornada;
Foi a graça que me trouxe em segurança até aqui, 
E é a graça que me levará para casa.
O Senhor prometeu o bem para mim, 
Sua palavra sustenta a minha esperança; 
Ele será meu escudo e minha porção, 
Enquanto esta vida durar.
Sim, quando esta carne e coração falharem, 
E a vida mortal cessar, 
Haverei de possuir,  
Uma vida de alegria e paz.
A terra em breve dissolver-se-á como a neve, 
O sol abster-se-á de brilhar; 
Mas Deus, que daqui de baixo me chamou,  
Será meu para sempre.»
Quando tiverem decorrido 10 mil anos,  
Brilhando como a luz do sol,
Não haverá menos dias para louvar a Deus

Do que da primeira vez que começámos. 

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