30 maio 2019

Crónicas de Praga (III) - ou Duas Últimas

Tudo tem a sua ocasião própria, e há tempo para todo propósito debaixo do céu.

Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar;
tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar;
tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de abster-se de abraçar;
tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar fora;
tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar;
tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.

(Livro do Eclesiastes)

***

Uma jovem sobrevivente da Bulgária faz uma apresentação a meias com a mãe. A apresentação é emotiva, ambas choram, talvez haja quem chore também na assistência. Uma das últimas frases da rapariga é esta (e cito de cor): even if your wings are broken, you can always fly with your heart. Comovi-me - e tive companhia de muita gente.

O que tem esta intervenção a ver com o excerto do livro do Eclesiastes? Tem tudo a ver, se o texto for pronunciado na primeira pessoa do singular; se o texto for lido de mim para mim, pensando no meu tempo e no tempo que eu tenho para cada propósito. 

Como disse há uns dias, as minhas primeiras experiências de conferências semelhantes àquela em que participei na semana passada assentavam muito em histórias semelhantes à da jovem búlgara. Sonhos, desejos, fragilidades, dificuldades, vitórias. Como o tempo tornei-me talvez mais duro, menos sensível, e queria ter mais informação sobre o progresso dos tratamentos, sobre os medicamentos disponíveis, sobre a tecnologia. Os momentos mais sensíveis eram os que envolviam a fragilidade humana: podiam ser a de uma mãe que mantinha relações sexuais com o marido uma vez por semana em nome de um certo "espírito de equipa", como podiam ser a de uma médica sueca que não estava preparada para dizer a um adolescente que ele ia morrer. 

Hoje, fruto da posição a que ascendi dentro da confederação, tenho (porque quero e porque devo) uma visão mais global do mundo, das assimetrias, do fosso, da necessidade de não nos fecharmos numa Europa rica e com taxas de sobrevivência boas e esquecer África, onde vinga a inversa. Talvez por isso, e porque sinto que uma das minhas tarefas (missão talvez seja exagerado) será (re)unificar esta organização mundial, percebo que por vezes volto atrás, ao tempo de chorar, ou de edificar, ou de falar. Quando me toca esse tempo, toca-me a frase da jovem búlgara, sobrevivente de um cancro.

Deixo-vos com o Livro do Eclesiastes, cantado pelos Byrds.

JdB

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