19 junho 2020

Da venda de uma pequena quinta

Ontem, juntamente com um primo - e em representação do resto da família - formalizei a venda de uma pequena quinta que nos era comum. O acto em si, uma escritura que durou pouco mais de 40 minutos, suscita-me duas ordens de devaneio.

1. A pandemia

Numa sala semi-acanhada de um advogado de província estavam 11 pessoas, todas de máscara: eu, duas pessoas da minha família e a nossa advogada; a compradora e namorado, a sua advogada, um representante da imobiliária, a notária e mais dois técnicos. A compradora é uma rapariga nova, belga, com uns olhos bonitos, e que me dizem ser muito simpática. Não tendo o hábito de vender quintas de família ou outros imóveis, nunca na vida me tinha deparado com uma cerimónia tão fria, tão impessoal, tão distante. O distanciamento social elimina o beijo ou o aperto de mão, a máscara impede a constatação de um face bem disposta. Ambas as coisas, somadas ou concomitantes, impedem um módico de humanidade, de proximidade, de calor afectivo. Contei uma história associada ao nome próprio da compradora, e que é um nome muito comum na minha família, e senti-me despropositado, porque não percebi se ela tinha achado interessante. 

Diz-se que é o sorriso que estabelece o comércio entre as pessoas. Talvez seja e, ao não existir - ou a existir por detrás de uma máscara - o comércio não é mais do que uma transacção que, não fossem as necessidades legais, poderia ser feita por zoom. Ao fim de 40 minutos despedimo-nos com o mesmo calor com que nos despedimos de alguém que nos traz uma encomenda: com educação e vagueza.

2. A família

Por circunstâncias próprias do meu crescimento e da minha vida familiar / social, fui consolidando a ideia de que a família não era o sangue. Podíamos sentir-nos mais familiares de uma vizinha de quem sempre fomos próximos do que de um primo direito a quem nada nos ligava. Não obstante, fui sendo educado - por via de uma capilaridade, não de uma instrução - que a família era o sangue; ou que era muito o sangue. A idade, a experiência ou uma certa sorte, permitiu uma convicção: família é tudo. Ou seja, o não sangue, mas o sangue também. Por vezes o que nos define como família não é, nem a proximidade, nem a semelhança de idades, nem uma convivência próxima, mas uma certa ideia de património imaterial que nos é comum por via de um nome de família. 

Do ponto de vista afectivo nada me ligava à pequena quinta que agora vendi / vendemos. Nunca lá passei férias, em 62 anos de vida não tenho memória de mais de meia dúzia de visitas. Contudo, dentro de mim alojou-se uma certa pena - vendi algo que também era património, sobretudo imaterial, de uma família comum. O desgosto (passe o exagero) que eu tive na venda da quinta é em quantidade igual ao gosto que eu tenho em conhecer um primo (que talvez nunca mais veja) numa qualquer festa. Há qualquer coisa, invisível e intangível, que nos aproxima. O quê? Um antepassado vago, uma história que se ouviu, uma memória comum, um conceito. Talvez a ideia, afectivamente racional (ou a sua inversa) de que família é (também) o sangue. 

JdB             
     

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