03 junho 2020

Vai um gin do Peter’s ?

UMA CRIANÇA DESENHOU A SAUDADE E MERGULHOU NO DESENHO

Uma imagem forte está, compreensivelmente há anos, a percorrer as redes sociais. Menos compreensível são as conotações quase opostas a que se tem prestado, tirando partido do seu enorme impacto, pelos vistos muito versátil. 

Se dúvidas houvesse sobre a elasticidade da expressão humana para influenciar a carga de significado de determinada mensagem, a história da divulgação da fotografia que se segue, é a melhor prova desse potencial, por vezes, a poder rasar alguma manipulação. 

Hoje, sublinha-se o problema das «fake news» como se a mentira fosse um fenómeno novo e não acompanhasse a humanidade desde o início, estando logo no epicentro da parábola do jardim do Éden. São, geralmente, lançadas com intencionalidade manipulativa, por governantes e gente do poder (mas não apenas) no afã de pontificarem sobre o rumo dos acontecimentos. Exemplos óbvios: Nero, Calígula, Filipe o Belo, Elizabeth I, Richelieu, Bismark, Rasputine, Lenine, Mussolini, Hitler, George W. Bush no caso da invasão do Iraque, etc. 

A tal imagem tão glosada parte de um jogo infantil comum, pelo menos no Médio Oriente pobre, de desenhar a giz, no chão, os desejos e os melhores sonhos. Foi nesse contexto que uma pequena orfã se aconchega, poeticamente, no coração da mãe querida que desenhou e ali adormece. Consta que nem terá chegado a conhecê-la, mas pouco é explicado sobre as circunstâncias daquela morte, se de doença, guerra, acidente (só na repescagem recente se atribui à guerra, que vem insinuada mas não provada nas citações mais antigas e próximas da fonte). Segundo o costume muçulmano, a criança entra descalça em solo sagrado, porque assim concebe o interior dos contornos da figura maternal gravados no chão:


Em 2013, a imagem circulou como crítica à invasão e desmantelamento do Iraque pelas tropas norte-americanas a mando de George W.Bush, embora continue por esclarecer a causa da morte daquela mãe, por hipótese – ainda que menos provável – alheia ao conflito militar. De todos os modos, isto em nada diminui a tragédia da guerra, per se. A legenda clarifica o objectivo do divulgador: «No Compassion. Only ambition». 

Em 2014, a imagem continuou a correr no mesmo registo político e acusatório, mas desta vez com o dedo apontado ao Presidente dos EUA em funções – Barack Obama – que proferira um discurso a referir os êxitos obtidos no Iraque: 

(c) Bahareh Bisheh
«Over the last 12 years or so, we have all seen horrific images of the human cost of this ongoing Global War On Terror.  I have heard (and shared) first-hand stories from our Troops of the local children they meet on their deployments in the hellholes of the world...»

Em 2015, surgiu num blog de espiritualidade oriental, integrado num conjunto de fotografias semelhantes, passando a um contexto de exaltação da capacidade humana de superação. A tal ponto vale a apologia, que termina com um cartoon sobre o valor determinante da perspectiva com que se encara a realidade, mesmo a mais adversa. Desse modo, coloca a tónica no olhar e na atitude com que se escolhe lidar com os factos (última imagem desta sequência), sendo que o cartoon apenas mostra a opção positiva adoptada pelos dois protagonistas, apenas diferentes na localização:

LEGENDA: «This picture broke my heart and made me appreciate my life a lot more»


Ao menos, em sonhos, aproximam-se da casa acolhedora que lhes faltará. 

Apesar do perigo em que estão, ambos preferem fixar-se nos motivos que merecem ser festejados.

Em 2017, reapareceu de forma neutra e sem legendas num artigo sobre apoio a menores abandonados, valendo-se da sua eloquência para evidenciar a dor indizível de uma inocente vulnerável. 

Mais recentemente, emergiu em redes sociais brasileiras, readquirindo conotação positiva e maior carga poética enquanto corporização da saudade: 


Na saudade, o desenho da pequenina iraquiana ganha uma dimensão próxima da perspectiva da autora-criança. Nesse sentido, torna-se especialmente verdadeira. Sem se negar a validade dos alertas sobre o horror da guerra e o flagelo da orfandade, a legenda brasileira devolve autenticidade ao gesto magnífico da minúscula artista plástica, que fez arte talvez sem saber. À simplicidade da sua pintura juntou uma coreografia genuína e plena de significado, que alavancou a força daquela mensagem visual. Da saudade, cantaram poetas-escritores brasileiros, que também navegam na língua de Camões dando-lhe, em geral, um colorido caloroso: «Ela estava triste. Não era uma tristeza difícil. Era mais como uma tristeza de saudade. Ela estava só. Com a eternidade à sua frente e atrás dela.» (Clarice Lispector – I); «Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.» (C. Lispector – II); «Guarda estes versos que escrevi chorando / Como um alívio a minha saudade / Como um dever do meu amor  / E quando houver em ti um eco de saudade / Beija estes versos que escrevi chorando.» (Machado de Assis). 

Com razão clamava Pessoa que o melhor do mundo são as crianças, capazes de atingir um patamar de verdade condensada, que as aproxima das estrelas. Não por acaso, também a obra-prima da menina iraquiana só se deixa ver e perceber a partir de cima… do céu, onde habitará a presença mais invisível da sua representação, retratada com sorriso suave e olhos atentos. Naquele recorte em giz onde adormeceu a criança rodeada de eternidade (segundo Lispector), ficou igualmente desenhada a ligação da terra ao céu com passagem pelo coração gigantesco daquela pequenina, que se ofereceu para pulsar com vida no lugar do coração de uma mãe inalcançável à vista, mas pressentida através do olhar interior. Percebe-se por que quis tirar os sapatos.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

2 comentários:

  1. Agradeço o post tão comovente.

    Onde habita a criança? A Saudade...o vazio de afectos...a necessidade de um colo apenas imaginado... a segurança delimitada da completude...

    Afinal, queixamo-nos de quê e para quê face a situações como as das imagens como as publicadas.



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