19 novembro 2020

Da santidade (II)

Resposta ao texto publicado a 17 de Novembro de 2020. É de um bom amigo com muito boa cabeça e conhecedor das coisas da Igreja Católica. Vale a pena ler.

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Eu percebo muito bem o que diz o JdB. A palavra chave da fórmula de proclamação de Santos que o João cita é esta: “declaramos”. 

Também eu não sei “o que está por trás desta regra [atribuição de milagres] da Igreja para a proclamação de beatos e santos”. Não sei, mas esta minha confessada ignorância não me à afirmação peremptória do João “discordo do processo de canonização seguido pela Igreja”. Mas, repito, percebo o que diz o João. Mas não querendo seguramente, penso que ele está a cair num vício não só de raciocínio mas sobretudo de julgamento das coisas da Igreja. 

Explico porquê. Não é curto, aviso já, mas espero que se perceba. 

Parto dum axioma: a Igreja, feita por homens, ontologicamente falíveis, é fruto da vontade de Deus. Se duas pessoas que estão à conversa não aceitam ambas isto, não vale a pena discutirem sobre a Igreja. Não vale a pena discutir coisas da Igreja com alguém que não é da Igreja, se me faço entender. E não vale a pena discutir, porque não partimos da mesma base de entendimento, não experimentamos a mesma sensação de pertença. Ora, eu vejo a Igreja por dentro, não por fora. Não a vejo como realidade histórica ou sociológica, mas como experiência de Deus. 

Digo isto primeiro para chegar a um ponto nevrálgico: eu sou menos do que a Igreja. Eu sei muito menos, na minha fugaz existência, do que a Igreja. E sobre a experiência eclesial sei muito menos do que muitos sacerdotes, quase todos os bispos e do que o Papa. Há coisas que eu não entendo na Igreja? Há, claro. Mas não presumo que elas sejam más. E presumo que não são más porque têm um selo de garantia. São de uma origem certificada: a Igreja. O facto de eu não perceber, para mim, só significa isso: eu não perceber. Mas eu não discordo de tudo o que não percebo. Há muitas coisas que as crianças não percebem mas que acatam porque vêm da boca autorizada da Mãe. É isso que a Igreja é para mim: a Santa Madre Igreja. 

Não é muito antiga (pelo menos nas suas consequências antropológicas) a defesa do primado do individual sobre o colectivo. Em nome do colectivo, experimentaram-se todas as tiranias, é certo. Mas a alternativa não é o individualismo. O pensamento cristão, tal como o leio, não fala nem no individual nem no colectivo. A nomenclatura católica (mais do que cristã, até) prefere a pessoa ao indivíduo e o comunitário ao colectivo. Sobretudo desde a segunda metade do século XVIII houve uma exacerbação do indivíduo. Aquilo a que chamo uma hipertrofia do “Eu”, tão avessa à cultura católica. Não admira pois que este caldinho cultural tenha aberto fissuras importantes na Igreja. “Eu” passou a ser o sujeito determinante da relação divina, não carecendo da intermediação. O “Eu” passou a poder estabelecer uma relação directa com Deus. O “Eu” subiu quase que em sentido próprio ao Céu e olha agora para a Igreja de lado. Ou melhor, olha para o lado para ver a Igreja, porque ficou no mesmo plano da Igreja. Não é pouco frequente ouvirmos “Para mim, …” e lá vem qualquer coisa que contraria o que é a tradição da Igreja. Esta “desintermediação” é disparatada porque é evidente que não há nenhum “eu” capaz de ombrear com a Igreja. A Igreja tem uma experiência milenar e um conhecimento acumulado de séculos. A Igreja não terá sempre razão e a prova disso é que há coisas que vão evoluindo, mudando, mas uma coisa é certa: o critério da razão não é o “eu”. Não sou eu. É preciso alguma humildade para reconhecer isto. A entronização da vontade individual, da minha vontade, a deificação do voluntarismo, do hedonismo, não é compatível com os ensinamentos evangélicos. 

Conclusão: eu posso ter opinião sobre tudo, mas é atrevimento (para não dizer soberba) entender que a minha opinião é mais qualificada do que a da Igreja. Presumo sempre que a opinião da Igreja é mais qualificada do que a minha e não me tenho dado mal com isso. 

Vamos agora ao ponto. A canonização tem efeitos meramente declarativos. A Igreja limita-se a reconhecer alguém como Santo e a inscrever o seu nome no Catálogos dos Santos… Quero isto dizer que há seguramente santos que nunca foram declarados como tal (daí o dia de todos os santos) e outros que tendo sido declarado santos o não são. 

Cân. 1186 — Para fomentar a santificação do povo de Deus, a Igreja recomen­da à veneração peculiar e filial dos fiéis a Bem-aventurada sempre Virgem Maria, Mãe de Deus, que Jesus Cristo constituiu Mãe de todos os homens, e promove o verdadeiro e autêntico culto dos outros Santos, com cujo exemplo os fiéis se edifi­cam e de cuja intercessão se valem. 

Cân. 1187 — Só é lícito venerar com culto público os servos de Deus, que foram incluídos pela autoridade da Igreja no álbum dos Santos ou Beatos.

Mas é preciso não confundir a santidade com a bondade. À bondade somos todos chamados. É um apelo de humanidade. A santidade é outra coisa. Ou seja, não há santos que não sejam bons, mas há muitos homens bons que não são santos. Parece-me esta, aliás, uma confusão perniciosa, sendo um perigo tremendo converter o catolicismo numa ética social. O catolicismo – na sua dimensão estritamente religiosa – quase dispensa a alteridade. O que releva é o amor a Deus. Amar a Deus sobre todas as coisas. É certo que a Madre Teresa  viveu “entre os pobres dos mais pobres”, recolheu “milhares de abandonados” e passou fome “para que os outros não a passassem”. Mas isso faz dela uma pessoa boa. Faz dela uma santa pessoa, mas não faz dela uma Santa. Essas condutas são apreensíveis pelos sentidos. Vêem-se. A nossa relação com  Deus é imperceptível. Uma pessoa poderia, em tese, fazer tudo quanto fez a Madre Teresa e rejeitar expressamente a existência de Deus, rejeitar a divindade de Jesus, etc… Seria uma pessoa menos boa por isso? Não… mas não seria seguramente Santa. Porque a Santidade não dispensa essa íntima conversão ao Plano de Deus. No meio dos pobres, no meio dos livros ou no meio do deserto. Deus conhece-nos a cada um e de cada um espera a adesão voluntária, íntima, imperceptível ao Seu plano. Lembro-me sempre daquela passagem bíblica em que Jesus, no meio da multidão, apertados por todos os lados, pergunta: Quem me tocou? (Lc 8,45). Jesus falava dum toque que não se via. Um toque de coração… Para se ser Santo é preciso tocar Jesus… no meio dos pobres, dos livros ou do deserto… é preciso querer tocar no manto de Jesus. 

Não se pense que a Igreja, no processo de canonização, só liga a milagres… não… nada disso. Antes disso, a vida, os escritos, públicos e inéditos, dos “candidatos” são escrutinados… Tenta-se perceber se há alguma coisa que nos leve – aos homens, falíveis – a admitir que o “candidato” não quis tocar em Jesus. Ora, a existência de milagre, a atribuição de um milagre a alguém, tanto quanto sei não é absolutamente necessário, e pode até ser dispensado, mas não há dúvidas de que, se ele existir, é a manifestação “de uma extraordinária intervenção de Deus no espaço da experiência humana”…

Vale a pena transcrever o que o S. João Paulo II ditou em 1983, penso eu, sobre esta matéria.

2) Nestas investigações o Bispo proceda segundo as Normas peculiares a pu­blicar pela Sagrada Congregação para as causas dos Santos, pela ordem seguinte: 

1.º Solicite ao postulador da causa, legitimamente nomeado pelo autor, uma informação cuidadosa acerca da vida do Servo de Deus, e ao mesmo tempo seja ele informado acerca das razões que pareçam aconselhar que se promova a causa da canonização. 

2.º Se o Servo de Deus tiver publicado escritos da sua autoria, o Bispo procure que sejam examinados por censores teólogos. 

3.º Se nada se encontrar nesses escritos contrário à fé e aos bons costumes, o Bispo mande examinar os outros escritos inéditos (cartas, diários, etc.) e ainda outros documentos, de algum modo relacionados com a causa, por pessoas idó­neas para tal, as quais, depois de terem desempenhado esse múnus, elaborem um relatório acerca das investigações feitas. 

4.º Se do que até então tiver sido realizado, o Bispo concluir prudentemente que se pode prosseguir, procure que sejam devidamente examinadas as testemu­nhas apresentadas pelo postulador e outras chamadas oficiosamente. 

Porém, se for urgente examinar as testemunhas para não se perderem as pro­vas, devem ser interrogadas mesmo ainda antes de se ter completado a investiga­ção acerca dos documentos. 

5.º A investigação acerca dos milagres aduzidos faça-se separadamente da investigação acerca das virtudes ou do martírio.         

NP

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