26 janeiro 2022

Dos relógios e do fado

 

Um primeiro e distraído olhar não encontrará razão alguma para que, a encimar este texto, se encontrem quatro fotografias: de Amália Rodrigues, de Manuel de Almeida, de um IWC e de um Patek Philippe (esta última já utilizada num post meu de há dias. E, no entanto, há um fio condutor que une tudo isto.  

Talvez já tenha feito uma analogia semelhante neste estabelecimento: gosto de fado e gosto de relógios. Imaginemos, em benefício do meu raciocínio, que alguém me formula um pergunta desafiante: se eu só pudesse ouvir um(a) fadista a cantar um único fado, quem me recomendaria? Não hesitaria um segundo na resposta: Amália Rodrigues. Ouvi-la é sermos confrontados com a genialidade, com uma qualidade, enquanto cantora, muito acima do normal. Se essa mesma pessoa me perguntasse que relógio usaria se só pudesse usar um relógio uma vez, o que recomendaria eu? Um IWC (do modelo acima, já agora). 

Perguntar-me-ão: que fazem o Patek Philippe e o Manuel de Almeida naquele friso de fotografias? Ambos estão ali porque em relação à pergunta e se eu puder ouvir muitos fadistas a cantarem muitos fados ou puder usar muitos relógios? a resposta seria pode ouvir Manuel de Almeida ou usar aquele Patek Philippe

Manuel de Almeida e aquele modelo de relógio não são itens para uma utilização apenas. Relativamente ao fadista, que não nos confronta com a genialidade, é preciso ouvir-se muito para perceber - e só depois apreciar - o estilo, a coerência, os pormenores de interpretação. Relativamente ao relógio, o argumento é o mesmo: há, no meu entender, uma estética muito determinante que impede que seja modelo único no pulso de um utilizador. 

Olhei para o Tiffany Blue Nautilus (o modelo da Patek Philippe) e pensei que não queria tê-lo. Depois percebi que este relógio é o Manuel de Almeida do fado. Não se tem um disco apenas deste fadista, como não se tem apenas este relógio. Quem tem este relógio tem mais modelos, desta ou de outras marcas, quem tem Manuel de Almeida tem vários discos (deste ou de outros fadistas). Este relógio é uma peça de colecção, não é uma peça de utilização (muito embora possa ser utilizado, claro está). 

Numa visão radical da vida, relógios deste tipo (ou fadistas deste tipo) não deveriam ser vendidos a quem só quer este, porque pode parecer exibicionismo; no fundo, como se um ignorante entrasse num restaurante e, no momento de se estrear no consumo de vinho tinto, pedisse um Barca Velha de 1991. Um chefe de mesa ajuizado não o permitiria, dizendo-lhe: beba outros vinhos primeiro; depois pode ir a um Barca Velha de 1991.

JdB 

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