31 março 2023

Preguiça *

Há, em todos os amores nascidos entre dois quase desconhecidos, um não sei o quê de misterioso, de inexplicável, de impalpável. Podem ser acasos que têm a sua existência no espaço de um instante: dois olhares que se cruzam numa multidão, uma madeixa caída sobre o enigma de um olhar penetrante, um sorriso cúmplice numa monotonia generalizada. Um segundo depois e o mundo já girou, e o que era encanto e fascínio volta a ser aborrecimento e rotina.

Jorge e Odete tinham-se apaixonado um pelo outro sem que ninguém vislumbrasse um motivo, ainda que não tivesse de ser lógico. Encontraram-se pela primeira vez em casa de amigos comuns. Nunca ninguém tinha achado grande graça ao estudante de Filosofia em fase de desenvolvimento de uma tese chamada “Os pecados mortais e o seu enquadramento na sociedade de hoje”. Era um rapaz desinteressante fisicamente, com um cabelo num permanente desalinho, uma roupa pingona à qual era impossível associar uma moda ou uma época, mas não a velhice e o pouco cuidado.

Ela, pelo contrário, era uma mulher bem parecida, assediada em permanência por gente que circulava em carros baixos a velocidades elevadas e conhecia as estância de esqui como uma intimidade que esmagava. Tinha uma figura que se aproximaria da perfeição, e uma cara tão interessante que até um pequeno sinal no queixo suscitava sensualidades inexplicadas. Ninguém percebia a motivação dela, o que lhe suscitara uma centelha de amor

O que vês nele, Odete? Que homem mais desinteressante...

E Odete respondia, oferecendo um sorriso e retendo as palavras.

Era um par improvável, mas mesmo assim um par, porque apareciam juntos em todo o lado - festas, jantares sociais, eventos culturais, premières de filmes. Os transeuntes fixavam-se na beleza dela, na sua frescura, na sua aura. Beleza que parecia maior porque há encantos que não só têm um valor absoluto – Odete era muito bonita, em qualquer lado -como têm um valor relativo – Odete era muito mais bonita do que Jorge.

As marés seguiam as suas rotinas mansas, as estações do ano prosseguiam com uma regularidade de relojoaria suíça, a lua mudava de fase seguindo uma regra milenar. Um dia, Jorge apareceu numa festa e revelou-se um homem elegante, bonito, com uma farpela clássica que lhe assentava como roupa por medida num modelo de elite. As pessoas paravam para olhar, sobretudo para avaliar a mudança que parecia radical: o cabelo bem cortado e penteado, umas calças clássicas e bem vincadas, uma camisa igual à de qualquer príncipe.

O que lhe fizeste, Odete? Está um homem tão bonito...

A rapariga sorria e olhava para o Jorge com um misto de admiração e erotismo.

Posso usar esta expressão porque já a discuti com ele no âmbito da sua tese de mestrado. O Jorge, de facto, teve de se arrepender de um grande pecado. É honesto, correcto, com um feitio cordato e não faria mal a ninguém. Mas comete um pecado mortal – a preguiça.... Nem sempre há gente feia, por vezes há gente preguiçosa. E isso também é pecado?

JdB

* publicado originalmente a 22 de Março de 2010

29 março 2023

Vai um gin do Peter’s ?

MAIS HORIZONTE ALIANDO CIÊNCIA E FÉ  

Investigações da ciência confirmam o mistério denso de realidades aparentemente experimentáveis e totalmente observáveis mas, afinal, difíceis de caber numa definição simples. Exemplo disso é a luz, cuja definição semi paradoxal para acumular estranhas camadas, beneficiou muito com a solução salomónica encontrada por Einstein. O grande físico concluiu que os dois conceitos comummente associados à luz são ambos válidos, ora prevalecendo uma interpretação, ora a outra, conforme o ângulo de observação. Assim, a luz mostra-se como onda e noutras circunstâncias como partículas. A dupla definição ou a dupla imagem para a descrever, evidencia que se trata de meras aproximações a uma realidade que permanece profundamente misteriosa – como observou Einstein – havendo muito mais por desvendar do que o pequeno vislumbre apanhado pela ciência. 

Nesta aproximação à Semana Santa, uma curta-metragem norte-americana sobre as afinidades (isso!) complementares entre fé e ciência torna-se especialmente interpelativa. Nenhuma se anula, antes se completam, permitindo ampliar o horizonte do conhecimento e até do entendimento humanos. Einstein reconheceu esta complementaridade, descortinando nos avanços da ciência, avanços e provas sobre a existência de um ser Criador omnipotente, omnisciente, expoente de toda a existência, que se esmerou a criar um universo incrivelmente fascinante. 

No país da indústria cinematográfica, também esta curta-metragem é profissional, apesar de não pertencer ao circuito comercial de Hollywood, afirmando-se como obra do cinema independente do Novo Mundo. Com profissionalismo e cumprindo os direitos de propriedade defendidos na cultura Ocidental, nada corre anonimamente, quando há um mínimo de contributo a reclamar, por ínfimo que seja. Por isso, a ficha técnica demora – ou melhor – merece  rodar por vários minutos, constituindo quase um terço do tempo total (15 min.)!  No início, o nome da equipa realizadora «Word on Fire» revela ao que vem, intitulando o filme de «WONDER – THE HARMONY OF FAITH & SCIENCE». 

Depois das magníficas gravuras antigas que servem de fundo à ficha técnica inicial, sinalizando bem que o argumento tem forte raiz histórica, a imagem inaugural do filme arranca  com a imensidão do oceano, cenário ideal para mergulhar numa das maiores afinidades entre um mundo e o outro, para percorrermos o paralelismo similar nas investigações de cada um destes universos. Quantas realidades mais intrincadas são abordadas e explicadas através de um jogo de paradoxos, essencial para a aproximação possível à quadratura do círculo? Significativamente, fica também o aviso de que o paradoxo não nasce do que se desconhece, mas antes do que está ao alcance humano fazer para conhecer mais e melhor: «Light from Light: SCIENTIFIC ENIGMAS AND THEOLOGICAL MYSTERIES». 

Do lado da ciência, serve de exemplo o estudo da luz física e, menos aprofundadamente, também o da matéria. Do lado da teologia, avança-se com o mistério da Santíssima Trindade e também com um dos atributos de Deus – luz do mundo. No fluir do filme, acaba por se perceber as interligações entre a luz física e a luz que Cristo afirmou ser, num entrecruzar e acumular de abordagens entre a ciência e a fé para benefício mútuo. Enquanto duas leituras paralelas de uma mesma realidade, são equiparáveis às diferentes vertentes que conduzem ao cume do Evereste, onde a North Face é simplesmente mais badalada por ser a mais utilizada pelos alpinistas, pelo menor risco que envolve. Esta fórmula de win-win, bem ao gosto norte-americano, demonstra quanto o enriquecimento do saber sobre a luz física também melhora a percepção possível sobre a SS.ma. Trindade. 

A realização cabe a Manny Marquez, o argumento a Christopher Baglow com versão adaptada ao ecrã por Matthew Becklo, banda sonora original fantástica, assinada por Sean Beeson, locução impecável de Jonathan Roumie. E isto é só uma pequena amostra do enorme trabalho de equipa aqui espelhado:

    

Talvez a melhor síntese do sentido do argumento seja oferecida por Raztinger, citado quase no final: «What is true here in the physical realm, is true in an incomparable greater degree of the spiritual realities and of God. Only by circling around, by looking and describing from different apparently contrary angles can we succeed in alluding to the Truth, which is never visible to us in totality. Here, science and faith meet in humility, in awe and in wonder

Nesta contagem decrescente para a madrugada mais luminosa do ano, com o regresso do Crucificado à vida, redescobrir o fascínio da Criação é um óptimo convite a aguçarmos o olhar para a redescoberta da luz pascal. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

28 março 2023

Ainda dos preconceitos

Estátua de D. Manuel I em Elvas. É pouco mais do que um anão

Há pouco menos de um ano escrevi um texto intitulado "Dos preconceitos". que começava assim: 

Ao meu lado, uma pessoa classifica socialmente as pessoas que estão num determinado local: é tudo gente gorda. Do meu outro lado, outra pessoa classifica socialmente as pessoas que estão num determinado local: é tudo gente que fala alto. O que é comum a estas duas pessoas? O preconceito. O que separa estas duas pessoas? A forma como cada uma delas sente o mundo que a rodeia.

Alguém que eu conheço fala sempre de crianças que lhe são próximas em função da altura, e conta como amigos / conhecidos falam com espanto sobre a altura dessas mesmas crianças. Di-lo com orgulho, referindo que fulano e beltrano (essas tais crianças) são mais altos/as do que a média. 

O que significa, em 2023, falar da altura de crianças como sendo uma qualidade? E a partir de quando é que a altura de uma criança passa a ser, não uma qualidade, mas uma característica que lhe dificultará a vida em adulto, porque não cabe nos bancos, é maior do que a generalidade dos jovens da sua idade, vai apertado num automóvel ou num avião ou é desajeitado?

Provavelmente como a generalidade dos seres humanos, fui educado - também - nos preconceitos. Havia famílias para quem a prerrogativa era o dinheiro, para outras era o nome, para outras era uma espécie de estética (nunca conheci ninguém que apreciasse o feio...) ou as vidas desportistas e saudáveis e os físicos elegantes. Na minha família o preconceito era contra os maçadores. As pessoas podiam ser baixas ou feias, viver na penúria ou ter um nome que as não distinguisse, não fazer desporto ou serem gordas. Não podiam era maçar o próximo. Este preconceito - apesar de muito pouco cristão - tinha uma valência prática: na verdade, um maçador estraga uma noite. Ora, ser alto - e fazer disso uma nota distintiva - não tem uma valência prática: não significa que se será mais doente, ou mais feio ou com menos sucesso ao amor ou aos negócios. Significa - e apenas - que numa dada fase da vida se é mais pequeno do que os outros.

65 anos de vida deram para conhecer muita gente e muitos preconceitos. Ainda não encontrei, no entanto, gente maçadora com preconceito contra maçadores; ainda não encontrei gente baixa com preconceito contra gente baixa ou gente feia com preconceitos contra a fealdade. Encontrar gente assim é que seria desafiante. Encontrar o que é mais vulgar é ser apenas confrontado com a arrogância. Ao contrário do snob, que valoriza o nome que ele próprio não tem, os detentores de outros preconceitos valorizam o que já têm. O mérito é pouco.

JdB

27 março 2023

Pensamentos dos dias que correm

 A Lucidez da Velhice

A mocidade é noivado, como a velhice é viuvez. Um jovem, por mais marido que seja, é noivo ainda; e um velho, embora casado, é já viúvo... um solitário guardando as cinzas duma flor. Mas dessas cinzas o seu espírito se alimenta. Alimenta-se de pureza, pois a cinza é o que resta dum incêndio, essa purificação suprema. Por isso, a consciência é um atributo da velhice, e também a ciência. A consciência é a ciência connosco, a ciência identificada ao nosso ser, que entra no pleno conhecimento de si mesmo, e do seu poder representativo do Universo. A velhice é uma noite maravilhosa em que brilham as nossas ideias, uma atmosfera límpida ou varrida pelo zéfiro da morte, a única Deusa verdadeira.

Teixeira de Pascoaes, in 'A Saudade e o Saudosismo'

26 março 2023

V Domingo da Quaresma

EVANGELHO - Jo 11,1-45

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
estava doente certo homem, Lázaro de Betânia,
aldeia de Marta e de Maria, sua irmã.
Maria era aquela que tinha ungido o Senhor com perfume
e Lhe tinha enxugado os pés com os cabelos.
Era seu irmão Lázaro que estava doente.
As irmãs mandaram então dizer a Jesus:
«Senhor, o teu amigo está doente».
Ouvindo isto, Jesus disse:
«Essa doença não é mortal, mas é para a glória de Deus,
para que por ela seja glorificado o Filho do homem».
Jesus era amigo de Marta, de sua irmã e de Lázaro.
Entretanto, depois de ouvir dizer que ele estava doente,
ficou ainda dois dias no local onde Se encontrava.
Depois disse aos discípulos:
«Vamos de novo para a Judeia».
Os discípulos disseram-Lhe:
«Mestre, ainda há pouco os judeus procuravam apedrejar-Te
e voltas para lá?»
Jesus respondeu:
«Não são doze as horas do dia?
Se alguém andar de dia, não tropeça,
porque vê a luz deste mundo.
Mas se andar de noite, tropeça,
porque não tem luz consigo».
Dito isto, acrescentou:
«O nosso amigo Lázaro dorme, mas Eu vou despertá-lo».
Disseram então os discípulos:
«Senhor, se dorme, está salvo».
Jesus referia-se à morte de Lázaro,
mas eles entenderam que falava do sono natural.
Disse-lhes então Jesus abertamente:
«Lázaro morreu;
por vossa causa, alegro-Me de não ter estado lá,
para que acrediteis.
Mas, vamos ter com ele».
Tomé, chamado Dídimo, disse aos companheiros:
«Vamos nós também, para morrermos com Ele».
Ao chegar, Jesus encontrou o amigo sepultado havia quatro dias.
Betânia distava de Jerusalém cerca de três quilómetros.
Muitos judeus tinham ido visitar Marta e Maria,
para lhes apresentar condolências pela morte do irmão.
Quando ouviu dizer que Jesus estava a chegar,
Marta saiu ao seu encontro,
enquanto Maria ficou sentada em casa.
Marta disse a Jesus:
«Senhor, se tivesses estado aqui,
meu irmão não teria morrido.
Mas sei que, mesmo agora, tudo o que pedires a Deus,
Deus To concederá».
Disse-lhe Jesus: «Teu irmão ressuscitará».
Marta respondeu:
«Eu sei que há-de ressuscitar na ressurreição, no último dia».
Disse-lhe Jesus:
«Eu sou a ressurreição e a vida.
Quem acredita em Mim,
ainda que tenha morrido, viverá;
E todo aquele que vive e acredita em Mim, nunca morrerá.
Acreditas nisto?»
Disse-Lhe Marta:
«Acredito, Senhor, que Tu és o Messias, o Filho de Deus,
que havia de vir ao mundo».
Dito isto, retirou-se e foi chamar Maria,
a quem disse em segredo:
«O Mestre está ali e manda-te chamar».
Logo que ouviu isto, Maria levantou-se e foi ter com Jesus.
Jesus ainda não tinha chegado à aldeia,
mas estava no lugar em que Marta viera ao seu encontro.
Então os judeus que estavam com Maria em casa
para lhe apresentar condolências,
ao verem-na levantar-se e sair rapidamente,
seguiram-na, pensando que se dirigia ao túmulo para chorar.
Quando chegou aonde estava Jesus,
Maria, logo que O viu, caiu-Lhe aos pés e disse-Lhe:
«Senhor, se tivesses estado aqui,
meu irmão não teria morrido».
Jesus, ao vê-la chorar,
e vendo chorar também os judeus que vinham com ela,
comoveu-Se profundamente e perturbou-Se.
Depois perguntou: «Onde o pusestes?»
Responderam-Lhe: «Vem ver, Senhor».
E Jesus chorou.
Diziam então os judeus:
«Vede como era seu amigo».
Mas alguns deles observaram:
«Então Ele, que abriu os olhos ao cego,
não podia também ter feito que este homem não morresse?»
Entretanto, Jesus, intimamente comovido, chegou ao túmulo.
Era uma gruta, com uma pedra posta à entrada.
Disse Jesus: «Tirai a pedra».
Respondeu Marta, irmã do morto:
«Já cheira mal, Senhor, pois morreu há quatro dias».
Disse Jesus:
«Eu não te disse que, se acreditasses,
verias a glória de Deus?»
Tiraram então a pedra.
Jesus, levantando os olhos ao Céu, disse:
«Pai, dou-Te graças por Me teres ouvido.
Eu bem sei que sempre Me ouves,
mas falei assim por causa da multidão que nos cerca,
para acreditarem que Tu Me enviaste».
Dito isto, bradou com voz forte:
«Lázaro, sai para fora».
O morto saiu, de mãos e pés enfaixados com ligaduras
e o rosto envolvido num sudário.
Disse-lhes Jesus:
«Desligai-o e deixai-o ir».
Então muitos judeus, que tinham ido visitar Maria,
ao verem o que Jesus fizera, acreditaram n'Ele.

24 março 2023

Imagens dos dias que correm

 

Convento dos Cardaes, Março de 2022. Pormenor visto pelo meu telemóvel

22 março 2023

Textos dos dias que correm *

"OUTRO DIA DEI com uma expressão que nunca tinha ouvido: «Como canários nas minas». Imaginei que fosse uma metáfora obscura, mas investiguei o caso. E descobri este facto: que, em décadas passadas, os canários eram usados nas minas de carvão para detectar a existência de gás metano e dióxido de carbono. Quando ainda não existiam instrumentos tecnológicos que pudessem assinalar esses perigos, os mineiros levavam canários e largavam os canários em direcção ao fundo das minas, antes de descerem eles mesmos. Os pássaros, de um amarelo vivo e visível, iam esvoaçando e cantando mina abaixo. Se existissem gases letais, os canários, que têm um metabolismo muito sensível, ficavam logo sem oxigénio, oscilavam violentamente, deixavam de cantar e caíam mortos. Era o alarme para que os mineiros saíssem rapidamente da mina, antes que tivessem problemas de respiração ou que houvesse a possibilidade de explosões.
Tudo isto me pareceu extraordinário. Não deve haver profissão mais terrível e admirável que a de mineiro. São uma espécie de viajantes ao centro da terra. Uma vida duríssima, em profundezas dantescas, um trabalho árduo e com o risco de quedas, desabamentos e outras ameaças mortais. Em documentários, vejo os homens emergirem das minas, farruscados e exaustos, como se fossem uns Orfeus prosaicos mas valentes, que vão onde poucos se atrevem, ao mesmo tempo explorando os recursos que o subsolo nos oferece e encontrando continentes desconhecidos, como descobridores da escuridão. Há nos mineiros um espírito de aventura, necessidade e pânico que me impressiona e assusta.
Mas confesso que não estava à espera dessa utilização preventiva dos pássaros, suponho que actualmente abandonada. É impossível não ter sentimentos contraditórios acerca desse esquema. A nossa sensibilidade actual condena (e com razão) o sacrifício de animais. Ainda para mais, os canários são animais doces e musicais, uma espécie de símbolo da harmonia ou da meninice. É verdade que os mineiros também usavam ratos (menos eficazes na sua acção), mas os ratos são bichos repelentes. Em contrapartida, é difícil não gostar de canários. O último animal de estimação que eu tive, em criança, foi um canário, amarelo vivo, que conhecia as pessoas e reagia a cada uma de modo diferente. Quando partiu uma pata e depois morreu, em agonia, senti um luto pela sua morte que me levou a nunca mais querer animais em casa.
E contudo acho essa tal estratégia muito engenhosa, quase poética. Imagino os mineiros descendo, levando as gaiolas, os pássaros talvez inquietos, e depois os homens largando os canários nas minas, uma espécie de mancha amarela, uma algazarra no fundo do mundo que era bom sinal, excepto se se transformasse depois em caos e silêncio. Num aviso para que os mineiros saíssem depressa e evitassem o mesmo destino. Como em quase todos os casos em que os homens se relacionam com os animais (cativeiro doméstico, experiências científicas, uso da sua força motriz), havia nisso uma violência mas também uma espécie de irmandade. Nenhum mineiro queria que os canários morressem. Se eles morressem, isso significava uma atmosfera inquinada que também punha em causa os humanos. Pássaros e mineiros unidos na mesma condição frágil, uns como batedores inconscientes, os outros como retaguarda temerosa. E imagino a alegria dos mineiros, sofridos e expectantes, quando ouviam os canários, animais como eles, cantarem sem interrupção, amarelo-vivos, canários como comoventes arautos da esperança."
.
Pedro Mexia
In "Nada de melancolia"

21 março 2023

Da conservação da energia *

 Quando uma quantidade de energia de qualquer natureza desaparece numa transformação, então produz-se uma quantidade igual em grandeza de uma energia de outra natureza (Julius Robert Mayer, em 1842).

A energia total (mecânica e não mecânica) de um sistema isolado, um sistema que não troca matéria e/ou energia com o exterior, mantém-se constante (Max Planck, em 1887). 
*** 
É proverbial a resposta de Churchill à pergunta sobre a sua longevidade: não fazer sentado o que pode fazer-se deitado; não fazer em pé o que pode fazer-se sentado. 
A história conta-se com o objectivo de por o interlocutor a rir. Isto é, no pensamento do estadista inglês há forçosamente uma nota de graça, uma curiosidade divertida saída da boca de um homem pródigo nestas respostas fulgurantes. De outra forma não poderia ser, pois a ideia de uma certa conservação da energia é pouco consentânea com a espiral de agitação e movimento que caracteriza os tempos modernos. E no entanto a história tem muito mais do que uma nota de humor. 
Dos meus tempos de profissional das coisas multinacionais aprendi o conceito de eficiência vs eficácia (e não garanto acertar na distinção): to do the things rightversus to do the right things. Ser-se eficaz é, portanto, fazer as coisas certas, não fazer bem as coisas. Ora, como se confunde este distinção com uma certa noção de preguiça? Fazer o menos possível é sempre sinal de indolência? E fazer muito é sempre sinal de produtividade? Obviamente que a pergunta é extremada, mas o estabelecimento é albergue de raciocínios aos quais não se exige profundidade. 
Levo o tema para uma dimensão bíblica, e dou a voz ao evangelista S. João (11, 1-3): 

Continuando o seu caminho, Jesus entrou numa aldeia. E uma mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Tinha ela uma irmã, chamada Maria, a qual, sentada aos pés do Senhor, escutava a sua palavra. Marta, porém, andava atarefada com muitos serviços; e, aproximando-se, disse: «Senhor, não te preocupa que a minha irmã me deixe sozinha a servir? Diz-lhe, pois, que me venha ajudar.» 
O Senhor respondeu-lhe: «Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada.» 
Há nesta passagem bíblica um certo elogio da conservação da energia, se me é permitida a ousadia. Marta talvez fosse eficiente; Maria talvez fosse eficaz. Há uma espécie de elogio da inactividade em detrimento da acção que não é de deitar fora. 
Hoje fiz a minha ronda de blogues habitual. E porque o mundo por vezes se aproxima da perfeição, encontrei este texto num blogue que frequento com muita regularidade. A coincidência não poderia ser maior: 
Talvez uma das mais fundas e inexplicáveis ilusões da espécie humana resida na distinção, ou mesmo oposição, entre o repouso e o movimento. Esta distinção está na base, por exemplo, da diferenciação entre a acção e a contemplação, entre Marta e Maria. Aquilo que o viandante aprende na viagem, porém, diz-lhe outra coisa, diz-lhe que se deve mover como se estivesse em repouso e repousar como se movesse. Diz-lhe que deve agir contemplando e contemplar como a forma mais elevada de acção. Diz-lhe que Marta e Maria não são duas irmãs, mas apenas uma e a mesma pessoa que acolhe, de múltiplas maneiras, o Cristo em sua casa. 
A fronteira entre a preguiça e a eficácia (na sua dimensão mais alargada) pode ser um fio de cabelo. Sei bem do que falo, porque tenho as duas dentro de mim...

JdB
* publicado originalmente a 29 de Outubro de 2014

20 março 2023

Textos dos dias que correm

A Primeira Palavra que em Toda a Minha Vida me Esgotou o Ser

Uma palavra. Disse-a. Amo-te - uma palavra breve. Quantos milhões de palavras eu disse durante a vida. E ouvi. E pensei. Tudo se desfez. Palavras sem inteira significação em si, o professor devia ter razão. Palavras que remetiam umas para as outras e se encostavam umas às outras para se aguentarem na sua rede aérea de sons. Mas houve uma palavra - meu Deus. Uma palavra que eu disse e repercutiu em ti, palavra cheia, quente de sangue, palavra vinda das vísceras, da minha vida inteira, do universo que nela se conglomerava, palavra total. Todas as outras palavras estavam a mais e dispensavam-se e eram uma articulação ridícula de sons e mobilizavam apenas a parte mecânica de mim, a parte frágil e vã. Palavra absoluta no entendimento profundo do meu olhar no teu, palavra infinita como o verbo divino. Recordo-a agora - onde está? Como se desfez? Ou não desfez mas se alterou e resfriou e absorveu apenas a fracção de mim onde estava a ternura triste, o conforto humilde, a compaixão. Não haverá então uma palavra que perdure e me exprima todo para a vida inteira? E não deixe de mim um recanto oculto que não venha à sua chamada e vibre nela desde os mais finos filamentos de si? Uma palavra. Recupero-a agora na minha imaginação doente. Amo-te. Na intimidade exclusiva e ciumenta do nosso olhar mútuo e encantado. Fecha-nos o lençol na claridade difusa do amanhecer, estás perto de mim no intocável da tua doçura. Frágil de névoa. Fímbria de sorriso e de receio, de pavor, no meu olhar embevecido. Uma palavra. A primeira que em toda a minha vida me esgotou o ser. A que foi tão completa e absorvente, que tudo o mais foi um excesso na criação. Deus esgotou em mim, na minha boca, todo o prodígio do seu poder. Ao princípio era a palavra. Eu a soube. E nada mais houve depois dela. 

Vergílio Ferreira, in 'Para Sempre' 

19 março 2023

IV Domingo da Quaresma

EVANGELHO - Jo 9,1-41
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo,
Jesus encontrou no seu caminho um cego de nascença.
Os discípulos perguntaram-Lhe:
«Mestre, quem é que pecou para ele nasceu cego?
Ele ou os seus pais?
Jesus respondeu-lhes:
«Isso não tem nada que ver com os pecados dele ou dos pais;
mas aconteceu assim
para se manifestarem nele as obras de Deus.
É preciso trabalhar, enquanto é dia,
nas obras d'Aquele que Me enviou.
Vai cegar a noite, em que ninguém pode trabalhar.
Enquanto Eu estou no mundo, sou a luz do mundo».
Dito isto, cuspiu em terra,
fez com a saliva um pouco de lodo e ungiu os olhos do cego.
Depois disse-lhe:
«Vai lavar-te à piscina de Siloé»; Siloé quer dizer «Enviado».
Ele foi, lavou-se e ficou a ver.
Entretanto, perguntavam os vizinhos
e os que antes o viam a mendigar:
«Não é este o que costumava estar sentado a pedir esmola?»
Uns diziam: «É ele».
Outros afirmavam: «Não é. É parecido com ele».
Mas ele próprio dizia: «Sou eu».
Perguntaram-lhe então:
«Como foi que se abriram os teus olhos?»
Ele respondeu:
«Esse homem, que se chama Jesus, fez um pouco de lodo,
ungiu-me os olhos e disse-me:
'Vai lavar-te à piscina de Siloé'.
Eu fui, lavei-me e comecei a ver».
Perguntaram-lhe ainda: «Onde está Ele?»
O homem respondeu: «Não sei».
Levaram aos fariseus o que tinha sido cego.
Era sábado esse dia em que Jesus fizeram lodo
e lhe tinha aberto os olhos.
Por isso, os fariseus perguntaram ao homem
como tinha recuperado a vista.
Ele declarou-lhes: «Jesus pôs-me lodo nos olhos;
depois fui lavar-me e agora vejo».
Diziam alguns dos fariseus:
«Esse homem não vem de Deus, porque não guarda o sábado».
Outros observavam:
«Como pode um pecador fazer tais milagres?»
E havia desacordo entre eles.
Perguntaram então novamente ao cego:
«Tu que dizias d'Aquele que te deu a vista?»
O homem respondeu: «É um profeta».
Os judeus não quiseram acreditar
que ele tinha sido cego e começara a ver.
Chamaram então os pais dele e perguntaram-lhes:
«É este o vosso filho? É verdade que nasceu cego?
Como é que agora vê?»
Os pais responderam:
«Sabemos que este é o nosso filho e que nasceu cego;
mas não sabemos como é que ele agora vê,
nem sabemos quem lhe abriu os olhos.
Ele já tem idade para responder: perguntai-lho vós».
Foi por medo que eles deram esta resposta,
porque os judeus tinham decidido expulsar da sinagoga
quem reconhecesse que Jesus era o Messias.
Por isso é que disseram:
«Ele já tem idade para responder; perguntai-lho vós».
Os judeus chamaram outra vez o que tinha sido curado
e disseram-lhe: «Dá glória a Deus.
Nós sabemos que esse homem é pecador».
Ele respondeu: «Se é pecador, não sei.
O que sei é que eu era cego e agora vejo».
Perguntaram-lhe então:
«Que te fez Ele? Como te abriu os olhos?»
O homem replicou:
«Já vos disse e não destes ouvidos.
Porque desejais ouvi-lo novamente?
Também quereis fazer-vos seus discípulos?»
Então insultaram-no e disseram-lhe:
«Tu é que és seu discípulo; nós somos discípulos de Moisés;
mas este, nem sabemos de onde é».
O homem respondeu-lhes:
«Isto é realmente estranho: não sabeis de onde Ele é,
mas a verdade é que Ele me deu a vista.
Ora, nós sabemos que Deus não escuta os pecadores,
mas escuta aqueles que O adoram e fazem a sua vontade.
Nunca se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos
a um cego de nascença.
Se Ele não viesse de Deus, nada podia fazer».
Replicaram-lhe então eles:
«Tu nasceste inteiramente em pecado e pretendes ensinar-nos?»
E expulsaram-no.
Jesus soube que o tinham expulsado
e, encontrando-o, disse-lhe:
«Tu acreditas no Filho do homem?»
Ele respondeu-Lhe:
«Senhor, quem é Ele, para que eu acredite?»
Disse-lhe Jesus;
«Já O viste: é Quem está a falar contigo».
O homem prostrou-se diante de Jesus e exclamou:
«Eu creio, Senhor».
Então Jesus disse-lhe:
«Eu vim para exercer um juízo:
os que não vêem ficarão a ver;
os que vêem ficarão cegos».
Alguns fariseus que estavam com Ele, ouvindo isto,
perguntaram-Lhe:
«Nós também somos cegos?»
Respondeu-lhes Jesus:
«Se fôsseis cegos, não teríeis pecado.
Mas como agora dizeis: 'Não vemos',
o vosso pecado permanece».

17 março 2023

Imagem e texto sobre uma breve viagem a Viena (II)

 

Viena, ontem, vista por um telemóvel

Ontem mandei para um amigo uma frase que lera num blogue: Cada homem só precisa de ter seis amigos a sério na vida, é quanto basta para saber que haverá quem lhe transporte o caixão. A resposta veio pronta: haverá sempre a Servilusa, na verdade só precisa de um amigo, e que seja cão para ter sempre quem o espere.

***

Estar em Viena é estar numa cidade movimentada - actualmente com muitas obras em curso - bonita e com trânsito, embora sem ruído de buzinas. É uma cidade civilizada. Os jardins estão cheios, as esplanadas também, tudo em Viena aproveita o sol. 

A primeira fotografia que publiquei ontem diz, caso o meu alemão seja suficiente, Faculdade de Anatomia (morfologia?). Por baixo, uma montra de um ginásio com passadeiras. O exercício física, actividade tão perniciosa à saúde humana é, aqui, elevada a um nível diferente: onde vais de fato de treino? Vou à faculdade...

Cruzei-me com esta cão - e a sua dona - ontem de manhã. Achei a imagem curiosa e pedi à dona para fotografar o cão. O meu espírito mais crítico decifrou o conjunto: uma senhora que trata os cães como se fossem pessoas. Não era nada disso. O cão não consegue andar e ela leva-o a passear. 

JdB 

15 março 2023

Vai um gin do Peter’s ?

 FALTA-NOS O SILÊNCIO – II  

Uma meditação da Madre Teresa de Calcutá (citada no “gin” 12.OUT.2022) lembrava que a natureza privilegia o silêncio, porque tudo medra melhor na tranquilidade de uma azáfama subtil, sem barulho, quase imperscrutável aos ouvidos humanos. 

Conta uma lenda que um lavrador perdeu o seu relógio de estimação, herdado da família, cujo modelo antigo já não estaria ao seu alcance voltar a arranjar. Inconsolável com tamanho desgosto, virou do avesso o celeiro onde lhe perdera o rasto, mas nada. Acorreu-lhe, então, pedir ajuda a umas crianças que brincavam por ali, aliciando-as com a promessa de uma boa recompensa para quem descobrisse o magnífico relógio. Cheios de ânimo, os miúdos revolveram o ‘local do crime’ de cima a baixo, mas nada. 

Triste e já preparado para dar o caso por encerrado, o lavrador vê aproximar-se um miúdo, que lhe pede para voltar ao celeiro sozinho para nova pesquisa. Claro que anuiu ao insólito pedido, pois pior não ficaria. Ao cabo de algum tempo, a criança voltou com o relógio na mão! Parecia magia! Nem dava para acreditar. Precipitaram-se logo sobre o rapaz, para perceber como tinha conseguido dar com aquela peça tão pequena. A maior surpresa veio da resposta sábia da criança: «mal entrei, sentei-me no chão e fiquei à espera, em silêncio, para ouvir o tique-taque do relógio (antigo, de corda) e perceber de onde vinha o som». 

O título da lenda varia entre “o poder do silêncio” e “escolhi esperar”, na senda da velha recomendação ‘pára, escuta e olha’, que valoriza a atitude expectante, capaz de dar maior atenção ao que nos rodeia. As vantagens são múltiplas, segundo os psicólogos que advogam o silêncio para maior concentração, auto-conhecimento, amadurecimento interior, capacidade de adaptação e até para aumentar a criatividade. Aplica-se igualmente à oração, para a escuta da voz de Deus e para melhor entender os refolhos da alma humana. É também considerada a atitude adequada para resolver problemas complexos, pois oferece o espaço de tranquilidade que melhora a percepção e a capacidade de engendrar respostas criativas. Einstein foi claríssimo: «The monotony and solitude of a quiet life stimulates the creative mind». Até o agitado Picasso prescrevia ao artista a solidão silenciosa: «Without great solitude, no serious work is possible». Está longe da passividade, menos ainda do alheamento da realidade. É apenas uma abordagem menos comum, menos vocal numa sociedade empanturrada num bruaá barulhento e atordoante. 

Indo mais longe, Bento XVI elogiou o silêncio, precisamente, no Dia Mundial da Comunicação Social (2012), explicando o seu elo intrínseco e complementar com a palavra, para permitir uma comunicação mais rica. Dalai Lama afirmava que «o silêncio é, por vezes, a melhor resposta» e Pitágoras considerava que «os insensatos distinguem-se pela conversa, enquanto os sábios pelo silêncio», porque implica boa dose de sabedoria e subtileza ser-se mais silencioso e não comunicar apenas por palavras:  

«SILÊNCIO E PALAVRA: caminho de evangelização 

(D)esejo partilhar convosco algumas reflexões sobre um aspecto do processo humano da comunicação que, apesar de ser muito importante, às vezes fica esquecido, sendo hoje particularmente necessário lembrá-lo. Trata-se da relação entre silêncio e palavra: dois momentos da comunicação que se devem equilibrar, alternar e integrar entre si para se obter um diálogo autêntico e uma união profunda entre as pessoas. Quando palavra e silêncio se excluem mutuamente, a comunicação deteriora-se, porque provoca um certo aturdimento ou, no caso contrário, cria um clima de indiferença; quando, porém se integram reciprocamente, a comunicação ganha valor e significado.

O silêncio é parte integrante da comunicação e, sem ele, não há palavras densas de conteúdo. No silêncio, escutamo-nos e conhecemo-nos melhor a nós mesmos, nasce e aprofunda-se o pensamento, compreendemos com maior clareza o que queremos dizer ou aquilo que ouvimos do outro, discernimos como exprimir-nos. Calando, permite-se à outra pessoa que fale e se exprima a si mesma, e permite-nos a nós não ficarmos presos, por falta da adequada confrontação, às nossas palavras e ideias. Deste modo abre-se um espaço de escuta recíproca e torna-se possível uma relação humana mais plena. É no silêncio, por exemplo, que se identificam os momentos mais autênticos da comunicação entre aqueles que se amam: o gesto, a expressão do rosto, o corpo enquanto sinais que manifestam a pessoa. No silêncio, falam a alegria, as preocupações, o sofrimento, que encontram, precisamente nele, uma forma particularmente intensa de expressão. Por isso, do silêncio, deriva uma comunicação ainda mais exigente, que faz apelo à sensibilidade e àquela capacidade de escuta que frequentemente revela a medida e a natureza dos laços. 

Quando as mensagens e a informação são abundantes, torna-se essencial o silêncio para discernir o que é importante daquilo que é inútil ou acessório. Uma reflexão profunda ajuda-nos a descobrir a relação existente entre acontecimentos que, à primeira vista, pareciam não ter ligação entre si, a avaliar e analisar as mensagens; e isto faz com que se possam compartilhar opiniões ponderadas e pertinentes, gerando um conhecimento comum autêntico. Por isso é necessário criar um ambiente propício, quase uma espécie de «ecossistema» capaz de equilibrar silêncio, palavra, imagens e sons.

Grande parte da dinâmica actual da comunicação é feita por perguntas à procura de respostas. Os motores de pesquisa e as redes sociais são o ponto de partida da comunicação para muitas pessoas, que procuram conselhos, sugestões, informações, respostas. Nos nossos dias, a Rede vai-se tornando cada vez mais o lugar das perguntas e das respostas; mais, o homem de hoje vê-se, frequentemente, bombardeado por respostas a questões que nunca se pôs e a necessidades que não sente. O silêncio é precioso para favorecer o necessário discernimento entre os inúmeros estímulos e as muitas respostas que recebemos, justamente para identificar e focalizar as perguntas verdadeiramente importantes. Entretanto, neste mundo complexo e diversificado da comunicação, aflora a preocupação de muitos pelas questões últimas da existência humana: Quem sou eu? Que posso saber? Que devo fazer? Que posso esperar? É importante acolher as pessoas que se põem estas questões, criando a possibilidade de um diálogo profundo, feito não só de palavra e confrontação, mas também de convite à reflexão e ao silêncio, que às vezes pode ser mais eloquente do que uma resposta apressada, permitindo a quem se interroga descer até ao mais fundo de si mesmo e abrir-se para aquele caminho de resposta que Deus inscreveu no coração do homem.

No fundo, este fluxo incessante de perguntas manifesta a inquietação do ser humano, sempre à procura de verdades, pequenas ou grandes, que dêem sentido e esperança à existência. O homem não se pode contentar com uma simples e tolerante troca de cépticas opiniões e experiências de vida: todos somos perscrutadores da verdade e compartilhamos este profundo anseio, sobretudo neste nosso tempo em que, «quando as pessoas trocam informações, estão já a partilhar-se a si mesmas, a sua visão do mundo, as suas esperanças, os seus ideais» (Mensagem de 2011, para o Dia Mundial das Comunicações Sociais). […]

A contemplação silenciosa faz-nos mergulhar na fonte do Amor, que nos guia ao encontro do nosso próximo, para sentirmos o seu sofrimento e lhe oferecermos a luz de Cristo, a sua Mensagem de vida, o seu dom de amor total que salva.

Depois, na contemplação silenciosa, surge ainda mais forte aquela Palavra eterna pela qual o mundo foi feito, e identifica-se aquele desígnio de salvação que Deus realiza, por palavras e gestos, em toda a história da humanidade. […]

Palavra e silêncio. Educar-se em comunicação quer dizer aprender a escutar, a contemplar, para além de falar […]» 

In  Mensagem do Papa Bento XVI para o 46º DIA MUNDIAL 
DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS - 24 de Janeiro de 2012.

Não por acaso, Maria «guardava no seu coração» todos os factos misteriosos e importantes que testemunhava, ciente de que só os poderia maturar naquele silêncio atento, a que o tempo vai dando sentido. Encarnou como ninguém este silêncio activo, aberto aos outros e à vida. Em tempo de Quaresma convidar ao silêncio ganha especial sentido. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

14 março 2023

Poemas dos dias que correm

 XXIX

 
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
 
 
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os meus pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...
 
s.d.
 
 
alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946

13 março 2023

Do tempo real *

  Compadre! Sabe como se chamam os habitantes de Évora?

- Todos todos na sê!

***

Antes de se ter inventado, nas suas múltiplas vertentes, o conceito de tempo real, já existia o conceito de tempo real - eram os maçadores. Esta ideia de tempo real está mais divulgada como operações que são executadas e mostradas no exacto instante em que ocorrem. Podemos falar de uma videoconferência, mas podemos falar de um programa de televisão em directo.

A anedota acima talvez seja, de entre as divertidas que vou ouvindo, a mais curta. Nunca uma anedota - género humorístico que deveria ser usado parcimoniosamente, como o tamarindo - atingiu um patamar tão elevado na relação custo benefício: é curta e faz rir. Mais do que isto maça e prejudica a saudável relação entre as pessoas que se querem bem.

Ora, se imaginarmos este diálogo em tempo real, e não como anedota contada ao café, ele demora mais tempo. Dois velhos reformados à sombra do toldo no café central local, uma mão lenta a enxotar as moscas na fase poisante, o cumprimento à vizinha, o cigarro que se acende, a pergunta que se faz e a resposta por que se espera. Ia dizer anseia, mas talvez seja demais. Há, no diálogo, um vagar que o Saint-Exupery apreciaria. 

Um homem saudável, no domínio das suas funções cerebrais - pelo menos essas - conta a anedota em 10 ou 15 segundos. O maçador socorre-se do conceito de tempo real e torna-se num manoel de oliveira da tradição oral. Enquadra, agita os braços, corrige a anedota a meio (o que será o meio de uma piada com duas frases) indaga se os presentes imaginariam a temperatura, faz alusões jocosas aos possíveis nomes dos intervenientes. Quando chega ao fim, há cortes de veias e esgares de ódio. Mas ele - o maçador - usou em pleno o conceito de tempo real, porque a anedota, na sua mente, demorou o mesmo tempo que o diálogo entre os velhos, com o toldo, a sombra, a mosca e o vagar de tudo...

Escusado será dizer que o raciocínio se aplica igualmente ao contar de histórias. Enquadrar uma história sobre o avô que bebeu, a tia que caiu ou o primo que era herói é enquadrar uma história brevemente. Não precisamos do tempo real, da lentidão com que o vizinho empurrava o barco, do cão que ladrava, do gelado que derretia nas mãos de uma criança feliz ao longe. Enquadrar é enquadrar, porque uma história não tem - nem deve ser - uma ópera de Wagner.

Quando perceberem que eu agarrei o conceito de tempo real dêem-me uma palmada nas costas. Se eu não reagir, batam-me com uma pá de ferro. Obrigado.

JdB  

* publicado originalmente a 20 de Novembro de 2014

12 março 2023

III Domingo da Quaresma

EVANGELHO - Jo 4,5-42

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
chegou Jesus a uma cidade da Samaria, chamada Sicar,
junto da propriedade que Jacob tinha dado a seu filho José,
onde estava a fonte de Jacob.
Jesus, cansado da caminhada, sentou Se à beira do poço.
Era por volta do meio dia.
Veio uma mulher da Samaria para tirar água.
Disse lhe Jesus: «Dá Me de beber».
Os discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos.
Respondeu Lhe a samaritana:
«Como é que Tu, sendo judeu,
me pedes de beber, sendo eu samaritana?»
De facto, os judeus não se dão com os samaritanos.
Disse lhe Jesus:
«Se conhecesses o dom de Deus
e quem é Aquele que te diz: 'Dá Me de beber',
tu é que Lhe pedirias e Ele te daria água viva».
Respondeu Lhe a mulher:
«Senhor, Tu nem sequer tens um balde, e o poço é fundo:
donde Te vem a água viva?
Serás Tu maior do que o nosso pai Jacob,
que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu,
com os seus filhos a os seus rebanhos?»
Disse Lhe Jesus:
«Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede.
Mas aquele que beber da água que Eu lhe der
nunca mais terá sede:
a água que Eu lhe der tornar se á nele uma nascente
que jorra para a vida eterna».
«Senhor, suplicou a mulher dá me dessa água,
para que eu não sinta mais sede
e não tenha de vir aqui buscá la».
Vejo que és profeta.
Os nossos pais adoraram neste monte
e vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar».
Disse lhe Jesus:
«Mulher, podes acreditar em Mim:
Vai chegar a hora em que nem neste monte
nem em Jerusalém adorareis o Pai.
Vós adorais o que não conheceis;
nós adoramos o que conhecemos,
porque a salvação vem dos judeus.
Mas vai chegar a hora - e já chegou –
em que os verdadeiros adoradores
hão de adorar o Pai em espírito a verdade,
pois são esses os adoradores que o Pai deseja.
Deus é espírito
e os seus adoradores devem adorá l'O em espírito e verdade».
Disse Lhe a mulher:
«Eu sei que há de vir o Messias,
isto é, Aquele que chamam Cristo.
Quando vier há de anunciar nos todas as coisas».
Respondeu lhe Jesus:
«Sou Eu, que estou a falar contigo».
Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus,
por causa da palavra da mulher.
Quando os samaritanos vieram ao encontro de Jesus,
pediram Lhe que ficasse com eles.
E ficou lá dois dias.
Ao ouvi l'O, muitos acreditaram e diziam à mulher:
«Já não é por causa das tuas palavras que acreditamos.
Nós próprios ouvimos
e sabemos que Ele é realmente o Salvador do mundo».

09 março 2023

quero(-te), quero(-me) *

 no tempo das suaves raparigas, às vezes a vida torna-se (quase) insuportável 
de tão furiosamente bela, mesmo se esculpida por impossibilidade e ausência.
eu, que de mim há séculos não sei, rodeio-me de feminis enredos ou regaços
forma de me esconder do mundo, de mim próprio, de tudo o que é contingência.
quero o absoluto, quero o amor, o erotismo que dá vida e mata, quero tanto o
que é impossível, o que ata e desata, o que desatina e desbarata, o que me mata.
quero a vida salgada, a ternura que é brasa, quero o mundo como minha casa,
quero o final da perda continuada, das pessoas que dizem adeus, acabar com
esta personagem que é só caravana que passa (antes ser cão ou ser tua poeira
cósmica, sublime e devassa), quero o amor absoluto, a flor na ponta da espada,
quero respirar o tempo que passa, quero suor erótico na ponta do meu cabelo,
alcançar estrelas, mandar-me de cabeça, renascer de novo com outro coração,
matar de vez esta fome, esta sede, a insana loucura desta temível sofreguidão.

gi.

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* publicado originalmente a 17 de Setembro de 2010

08 março 2023

Poemas dos dias que correm*

Body art?

Com os remédios 
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
é o menino
nos transportes públicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre
 
Emagreço 21 Kg
as colegas
da Faculdade de Letras
perguntam-me
se é menino
ou menina
 
No metro
um rapaz
e um velho
discutem
se eu estou grávida
o rapaz quer-me
dar o lugar
 
Detesto
o sofrimento
  
adilia lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004

07 março 2023

Da ida aos touros em Olivença



A convite de gente que me é próxima voltei aos touros em Espanha, passados, talvez, 20 anos.

Ir aos touros a Olivença é um programa desafiante sob vários motivos. Podemos ter a ideia saudosista de pisar terra portuguesa, ocupada ilegitimamente pelo infame vizinho; podemos ter a ideia de que vamos assistir a um espectáculo bárbaro que a burocracia árida da União Europeia não conseguiu proibir; podemos ter a ideia de que assistimos a um espectáculo desconfortável - em bom rigor, uma praça pequena onde distância para nos sentarmos é exígua e o encaixe entre as costas de quem nos está à frente e as pernas de quem nos está por trás tem de ser de uma precisão milimétrica, sob risco de cãibras e dores de costas; podemos ter a ideia de um espectáculo caro - afinal, um concerto na Gulbenkian, bem sentado e sem aperto é mais barato; podemos, por fim, ter a ideia de que se perde uma corrida (e o respectivo valor) porque a chuva que cai torna a lide impossível. 

Gostei de voltar às corridas de touros, porque gosto - ou não desgosto o suficiente - de tudo. Gosto da tradição dos acenos que, em extremos opostos da bancada, os populares fazem entre si à hora a que a corrida deve começar; gosto de uma certa irmandade que se sente, de pessoas que não se importam com um pé grande que assenta numa nádega alheia, que ajudam o próximo a não cair ou que abrem um sorriso quando percebem que somos portugueses. Gosto da alegria que se sente, das pessoas que se riem quando, ao segundo capotazo, já há alguém que grita "música, coño!", como também gosto das pessoas que se irritam com a falta de silêncio. Gosto, e muito, de uma certa ideia de ritualismo, de cerimonial, de pequenos gestos que são sinónimo de cortesia ou de orgulho por parte do matador de touros ou dos seus peões de brega. Gosto do risco, do arrojo - gosto menos de uma certa ideia de passes quase circenses; até gosto do meu próprio medo de que, num golpe de infortúnio, uma lide se esvaia numa poça de sangue; gosto das superstições, de observar o que fazem os intervenientes quando pisam a arena e percebem que vão defrontar um animal com 500 kg.  

Não me apanharão numa discussão sobre touros de morte, como já raramente me apanham numa discussão sobre religião ou, menos ainda, sobre Igreja. Há temas sobre os quais não vale a pena discorrer em público, bastando apenas dizer que se gosta. Há muito tempo que não ia a uma corrida de touros e gostei de voltar. Mais a mais em Olivença, com gente cuja companhia aprecio.  

Olé!

JdB 

05 março 2023

II Domingo da Quaresma

EVANGELHO - Mt 17,1-9

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João seu irmão
e levou os, em particular, a um alto monte
e transfigurou Se diante deles:
o seu rosto ficou resplandecente como o sol
e as suas vestes tornaram se brancas como a luz.
E apareceram Moisés e Elias a falar com Ele.
Pedro disse a Jesus:
«Senhor, como é bom estarmos aqui!
Se quiseres, farei aqui três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés a outra para Elias».
Ainda ele falava,
quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra
e da nuvem uma voz dizia:
«Este é o meu Filho muito amado,
no qual pus toda a minha complacência. Escutai O».
Ao ouvirem estas palavras,
os discípulos caíram de rosto por terra a assustaram se muito.
Então Jesus aproximou se e, tocando os, disse:
«Levantai vos e não temais».
Erguendo os olhos, eles não viram mais ninguém, senão Jesus.
Ao descerem do monte, Jesus deu lhes esta ordem:
«Não conteis a ninguém esta visão,
até o Filho do homem ressuscitar dos mortos».

03 março 2023

Memória pacífica *

 Chegará o momento em que a memória é maior do que o sofrimento e o cobre como um manto de serenidade. 

Entre o final da semana passada e o princípio desta, dois amigos perderam gente que lhes era próxima e de quem sentirão saudades. Num caso era a afinidade, noutro era o sangue. É irrelevante a quantidade de saudades que terão dos seus mortos, porque a dor do luto não se mede com a escala de Richter.  
A frase que encima o texto foi-me enviado por um deles com a pergunta: isto está certo?, porque quem ma mandou renovava uma experiência de morte, achando que eu havia vivido uma experiência da morte. A minha resposta, totalmente!, representava uma convicção, mais do que uma diplomacia de misericórdia. 
Não digo mais do que diriam psicólogos e outros técnicos desta área, nem diferente do que diriam pessoas que passaram por experiências de, ou da morte.  Não acrescento mais, por fim, ao que disse durante estes últimos anos.  
Não há dia em que não lembre quem me morreu. Aqui e ali, nos momentos mais sombrios que todos temos, lembro como me morreram, que o acto de desaparecer e a forma de desaparecer nem sempre são indissociáveis. Relativamente aos nossos mortos temos memórias e temos sentimentos. O que perdura de um e de outro quando o negro da alma vai dando lugar a lutos mais aligeirados? O que é mais doloroso de manter, o que é mais saudável activar dentro de nós? Não sei, nunca dediquei muito tempo a racionalizar uma dicotomia sobre a qual desconheço quase tudo. Mas sei o que o tempo faz, o que faz, sobretudo, a qualidade do tempo. Sei para mim, que sou incompetente para receitas universais: falar, lembrar, contar histórias e com elas sorrir, rir mesmo, talvez; assumir a dor da mesma forma que se assume o frio ou a noite, que mais não são do que o contraponto de momentos mais felizes; ter fotografias, guardar um ou outro objecto, não reprimir o que a mente apresenta aos sentidos; chorar sozinho ou com os amigos, comover-se com as coisas, por insignificantes que sejam; estar atento aos sinais; lembrar tudo, que a natureza do corpo, deixando-a livre, segue bem. Ter Fé, ter Fé, ter Fé.  
Aristóteles achava que a queda dos objectos era explicada pela tendência de cada um em procurar o seu local de repouso natural. Podemos, mesmo que isso exija um esforço desnecessariamente grande, replicar o raciocínio para o tema em apreço: tendemos para a paz interior, que é uma espécie de gravidade por explicar, porque é isso que Deus, a primeira causa de tudo, deseja para nós. Não ensino nada a ninguém mas acredito, com a mesma força com que acredito que Deus não é senão Amor, que de todos os nossos mortos, bem feitas as coisas - ou feitas as coisas de forma humanamente imperfeita -, teremos uma quantidade imensa de memórias pacíficas. A paz está para as memórias como a terra está para os objectos. Sei-o, mesmo que não me saiba fazer entender.   
JdB
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* publicado originalmente 16 de Outubro de 2013 

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