Tinha, como resquícios de outros tempos da fidalguia, uma ementa de um jantar a bordo do iate Amélia desenhada, autografada e dedicada pelo Rei D. Carlos. Estava numa mesa bonita, inglesa, emoldurada ao lado de fotografias do seu pai, da sua mãe, dos seus irmãos, de braço dado ou em alegre convívio com a realeza exilada no Estoril e Cascais. Habituara-se, em nova, a jogos de ténis, lanches em clubes elitistas, noites dançantes ao som de orquestras do brilho e da glória e por baixo de um manto de estrelas que só o poder do dinheiro e do nome podiam garantir. Casara mas não tivera filhos, vindo a separar-se anos mais tarde, numa altura em que o divórcio, não sendo currículum, já não era cadastro.
Encontrara aquele que viria a ser o seu segundo marido há meia dúzia de anos, numa missa de 7º dia, onde se perfilava uma fatia grande do PIB nacional e 80% dos sócios dos clubes lisboetas mais selectos. Antigo empresário, homem do seu nível social, com ele partilhara boleros e valsas inglesas, taças de champanhe e partidas de ténis, na variante pares mistos, onde ele evidenciara um serviço potente e um jogo quase imbatível ao fundo do court. Agora, alquebrado, com problemas nas costas, mantém a sanidade física possível num gingar de desacerto esquelético.
Criaram, ambos, a rotina do paredão matinal: ela de carteira a tiracolo, como se transportasse as jóias que lhe restam numa louis vuitton bem imitada, porque a ladroagem na vila está por demais. Ele no seu desacerto constante, ombro para cá e para lá, braço descompassado da perna oposta, uma coluna desesperada a aguentar partes que parecem querer soltar-se.
O "filme", infelizmente, está desbotado - se não de miséria, pelo menos de desilusão. Ele joga todas as noites, tentando simular, ao poker, o bluff que não conseguiu nas negociações com os sindicatos. Perde mais do que ganha, porque a trinca não entra, a sequência máxima é muito difícil, o full hand está no domínio das hipóteses irreais. Vai buscá-la todos os dias de carro a Atibá, onde o elemento final de uma família que privou com condes e marqueses e soletrou nomes difíceis de pronunciar (porque semi-estrangeiros com letras dobradas), é dama de companhia de uma idosa, com momentos cada vez mais improváveis de lucidez e noites agitadas que arruínam os desejos de descanso nocturno. Por volta das quatro da manhã, com uma pontualidade que enerva, há um encontro inesperado na mente da anciã acamada: o fulgor e a confusão, a memória e o olvido. Nunca se saberá quem vence a contenda que se verbaliza numa monólogo a quatro frases:
- Conheci muito bem a sua avozinha, devia eu ter uns doze ou treze anos. Cabia-me lavar as casas de banho todas - e olhe que eram muitas. Acho que a minha fralda está suja. Importa-se de a mudar?
Cruzo-me com eles todos os dias, conheço-lhes a história como ninguém. Ele traz no olhar o encavanço das cinco da manhã que o atirou, falido, para um sofá e uma água fresca sem gás. Ela traz a carteira a tiracolo, bem junta ao peito, porque o malandrice está como nunca se viu.
Olá bom dia,
ResponderEliminarcom o gosto de ter um amigo monárquico de coração, aqui deixo um simples olá dos tempos actuais. Para ficar e ser sempre em outros tempos..
São, em Tavira
Gostei, muito bem contada!
ResponderEliminarDirei mesmo deliciosa!
Continue a criar assim para quando eu regressar de férias "tirar a barriga de misérias".
Bj
São: obrigado pela visita. Goze bem Tavira, cidade bonita. Já percorri o Gilão a remar uma cano que ziguezagueava...
ResponderEliminarO que diriam os personagens (que existem) desta história tão verdadeira? Bj e boas férias
ResponderEliminarDesde muito novo, aprendi que poder e dinheiro são "coisas" que vão e vêm, por vezes, muito rapidamente. Quase tudo é relativo e, o que hoje é, amanhã, não é. Resta, portanto, tentar manter a elegância e a dignidade, seja lá onde e a fazer o quê... Bonito conto! Quanto à bandeira, prefiro a que é toda branca, com o escudo no meio mas, em todo o caso, esta é preferível à que anda por aí… Vai haver um interregno, mas lá mais para meados de Agosto, voltarei. Boa viagem e vá relatando as sensações e constatações. Abraço
ResponderEliminarJA: e aprendeu muito bem. Não se podendo agradar a todos em termos de bandeira, fica a última que se arreou há quase 100 anos.
ResponderEliminarBoa férias - se é a isso que corresponde o interregno. Ficarei à espera da vossa visita. Abraço.
Cheguei aqui via «Porta do Vento», e fiquei fascinada com este "apanhar" da realidade.
ResponderEliminarMantenha-se então por cá, Cristina, que quem nos visita honra-nos.
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