Um embaixador, acima de muitos outros misteres que não carecem de uma imagem impecável, tem de tratar de minudências capilares. Não me refiro à lavagem, embora esta seja de importância igual. O que me traz hoje ao blogue é a crónica de um corte de cabelo. Faço-o, e descanso os meus potenciais leitores sobre este assunto, de acordo com o visado na historiazinha, que lerá o texto antes da sua publicação.
Eram 11.45h de ontem, quinze minutos depois da hora que o JdC tinha registado na sua agenda, quando entrámos ambos numa vivenda dos subúrbios de Harare. No que seria o hall de entrada de uma habitação normal, existia uma ou duas cadeiras frente a um espelho corrido. Numa delas sentava-se pessoa dos meus conhecimentos, que retocava a cor do cabelo numa elegância de elogiar. Nada disto seria surpreendente - vamos esquecer, para já, o pormenor do salão funcionar paredes meias com uma habitação - se a pessoa em questão não puxasse de um cigarro e o fumasse alegremente, entre escovas, pentes, e secadores que lhe alindavam o cabelo.
Perguntámos se nos era permitido repousar o corpo cinquentão na varanda. Felizmente, a única funcionária presente não acedeu, porque a cadeira existente, tristemente só numa viuvez de mobiliário, não tinha fundo onde pudéssemos assentar as nobres nádegas. Sugeriu-nos que entrássemos para a sala, onde nos esperavam três sofás confortáveis em napa negra e um plasma a encimar uma lareira, dentro da qual se colocara um cesto com ovos de avestruz, vigiados por uma fotografia da proprietária do salão, colocada esteticamente a três quartos.
45 minutos depois da hora marcada - e perante o nervoso já anunciado da coiffeuse de serviço - o senhor embaixador prestava-se a um corte de cabelo que o prepararia (ainda mais, se possível) para qualquer representação ao nível máximo. A operação - tensa e vagarosa da jovem - demoraria uma hora! Muito cabelo?, perguntarão alguns; exigências estéticas?, aludirão outros. Nada disso. Eu explico:
De dois em dois minutos tocava o telemóvel (seriam vários?), o telefone fixo, ambos numa sanfona desarmoniosa com a música ambiente tipo Shakira com uma overdose de excitantes. A menina atendia, eventualmente. A meio do telefonema, ou do aparar de um madeixa diplomática, chegava uma cliente, e ambas recolhiam aos fundos, para uma conversa mais privada; o telefone voltava a tocar, entrava mais uma cliente e lá iam para as traseiras da vivenda ajustar uma qualquer outra conversação. Às tantas - não me pareceu bem, num representante de um país milenar - o JdC aparecia, de cabelo molhado e desgrenhado, envergando um bibe em nylon verde-alface para dar um dedo de conversa, espreitando, com curiosidade tristonha, o desaire olímpico nacional.
Na televisão plasmada, o fenómeno Phelps ganhava mais uma medalha; o stars and stripes nao se ouvia, vencido pelo som da cançonetista que gritava num frenesim ritmado; as clientes entravam e saíam, faziam-me perguntas às quais não sabia responder e seguiam o seu caminho, para mais uma conversa nos quartos resguardados. O suave e cuidado cabelo do embaixador de Portugal em Harare caía em pequenos flocos intervalados, ao longo de uma hora. Dentro da lareira, onde na época fria os clientes em lista de espera se aqueceriam junto a um lume crepitante, repousava agora o cesto de ovos, vigiado, a três quartos (o pormenor não é dispiciendo), pelo retrato singelo mas tocante da dona ausente do estabelecimento.
Duas perguntas se impõem, para encerrar a croniqueta:
1) o que eram as conversações nas assoalhadas resguardadas?
2) que tal ficou a cabeleira diplomática do nosso JdC?
À primeira não posso responder. À segunda não sei.
PS: mais semana menos semana toca-me saga do corte de cabelo. Dada a minha farta e forte gaforina, estou a pensar em cativar o salão entre as 9 e as 5 - talvez a menina tenha, ainda, de fazer horas extraordinárias, assumindo que nesse dia o vai-vem de clientes para os quartos dos fundos seja reduzido.
extensíssimo lol
ResponderEliminarJá tem 1271 visitas; a data célebre mais próxima penso que é 1385
ResponderEliminarPai