Este banco é coisa pública. Pelo que já vos descrevi, ele é pouco frequentado e hoje, dia 24 de Dezembro, ainda menos o será. Penso nos poucos que ficarão em breves momentos de contemplação e naqueles que aí se refugiarão, talvez por muitas horas desta tão longa noite.
Os primeiros serão aqueles que chegarão pelo meio, final da tarde e, desolados como este Largo, contemplarão as suas vidas, em apeadeiro na linha que irão percorrer até à estação de destino à qual não querem chegar. Sabem, todavia, que têm de ir, que terão de estar presentes numa morada que não é lar, numa relação que não é amor, numa convivência que não é afecto, numa presença que não é companhia, numa festa que não é alegria, numa celebração que sentem culto de coisa alguma.
Sentados, anteciparão a mentira e a farsa que irão representar. Antevêem os rituais, as palavras, as expressões, os votos, os gestos, os actos que, conforme o guião, irão cumprir e consumar, na esperança e ânsia de que finalmente caia o pano de cena e a noite chegue ao fim com o recolher ao leito onde, no isolamento e silêncio, ressurgirá a verdade da ruptura, do afastamento, da exclusão, devolvendo-lhes a dignidade da autenticidade.
Para esses o meu banco hoje é camarim, onde, amarga e envergonhadamente, se caracterizarão, se travestirão, de amantes, pais, filhos, tios, amigos, vizinhos, felizes a viverem o Natal, num espectáculo que se não for arruinado por uma pateada que surja por um erro de casting de algum dos actores, pode até terminar num aplauso comedido de agrado.
Sentam-se, pois, pessoas, e levantam-se actores de comédias trágicas a caminho do palco, e assim partem, deixando o camarim vago para quem dele precisar.
Quando vejo cada um deles partir em passo resoluto, e determinados a cumprir, aplaudo-os e acarinho-os, porque são actores, não são hipócritas, falsos ou fingidores, não são malévolos.
São pessoas cujas encruzilhadas da vida, os encontros e desencontros, os amores e desamores, as esperanças e realidades, os sonhos e os acontecidos, as fantasias e os factos, as tornaram desenraizadas, deslocalizadas, desfocadas, destacadas das vidas que construíram e das pessoas com quem as construíram, estando agora num limbo, num território de ninguém, sem pátria, Não pertencem a lugar algum ou a pessoa que seja. São marinheiros sem navio, navio sem porto.
Não têm maldade, o que não conseguem é ser lúcidos, compreenderem-se, esclarecerem-se, iluminarem-se e, consequentemente, reunir a coragem, determinação e tenacidade para quebrarem as amarras e embarcarem numa nova vida, que seja ela qual for, custe o que custar e doa a quem doer, lhes devolva a identidade da existência, a conformidade entre o ser e o parecer, a verdade, a genuinidade; em suma, a paz e o bem.
Essa nova vida para uns será uma vida alternativa, diversa, oposta, discrepante da vida velha que os consumiu, mas para outros será um regresso à vida original que foi estilhaçada, será o refundar dessa vida, firmando os alicerces e reconstruindo o que possa ter desabado, expurgando tudo e todos os que minem esse edifício.
Qualquer dos caminhos para essa nova vida exige muito, em especial descoberta, verdade, esperança, acção, coragem e renúncia.
São estes dons, virtudes, graças, que eu peço para todos os que usam o meu banco como camarim.
Este Natal será Feliz para os meus actores se, por ventura e inspiração, eles, neste que agora passa, se comprometerem a que no próximo Natal seguirão directos, sem precisar de parar em apeadeiros de refúgio e de adiamento, para os destinos que finalmente escolheram ou finalmente aceitaram, como vidas novas.
Acreditem: essa firme decisão será suficiente para um ânimo e vivência desta noite totalmente diferente da esperada, seja ela um nostálgico e carinhoso adeus ao que se vai deixar, seja ela uma esperançosa saudação de aurora ao que se vai reencontrar.
Saudados os meus actores, detenho agora os meus sentimentos naqueles que, como disse no início, antevejo que passarão pesadas horas no meu banco, nesta noite longa do dia 24 de Dezembro.
Esses chegarão pelo princípio da noite e ficarão por tempo indefinido, como indefinidas são as suas vidas.
Eles são os abandonados ou os que se abandonaram. Eles são os que não resistiram, os vencidos, inclusive por si próprios.
São espectros, são sombras de seres humanos que pairam em memórias, são imagens porque a vida se lhes esvai.
São mendigos, drogados, alcoólicos, desesperados, pobres.
São os destruídos, os destroçados.
Escolhem o meu banco pela mesma razão que escolhem qualquer coisa ou lugar, ou seja por razão nenhuma, já que não há mais razão na sua razão.
Não esperam nada, porque para eles o tempo acabou, o que resta é ir restando, ir cabendo em cada dia que vai passando, e ao qual dão tanto desprezo como dele sempre recebem.
Para eles não há Natal, mas, quando deitados no meu banco, embrulhados nos seus cartões, frios, sujos, com fome, repelentes, eles são o Natal, e o meu banco um altar em que repousam.
Eles são uma anunciação, viva, real, presente, que actualiza e contemporiza o nascimento do Menino Jesus, desafiando cada um de nós a confrontar-se com a evidência que foi isto que nós fizemos da criança que nasceu há 2000 anos.
Eles são o isto em que esse Jesus, menino adorado, se converteu pela desumanidade da humanidade.
O meu banco tem sobre si a realidade do que fizemos àquele menino que nasceu em Belém há 2000 anos.
Tenhamos a coragem de olhar e ver. Tenhamos a hombridade de reconhecer que não é possível que o presépio se tenha convertido nisto.
Como é que, colectiva e individualmente, contribuímos, ou pelo menos não conseguimos evitar, o isto.
O que se terá passado, para sermos agora confrontados com esta realidade, que é a do meu Largo da Boa-Hora, mas podia falar de África, da fome generalizada, das guerras, das injustiças, do desemprego, da constante dor humana infligida por (des)humanos que grassa em malfadada e eterna barbárie que perpetuamos.
Voltarei a escrever sobre este assunto, mas a primeira explicação para o presépio deste Natal, ser o mendigo acoitado no meu banco, é a que colectivamente não cumprimos o mandamento novo de Jesus: “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”.
Se o critério primeiro da obra do Homem fosse o Amor ao próximo, não tínhamos sistemas políticos, económicos e sociais que consentissem, em parte alguma, sequer no mais pequeno foco, as marginalização, pobreza, degradação, exclusão... bestialização de irmãos.
Individualmente falhamos nas virtudes da fraternidade, igualdade e caridade (é por demais óbvio).
Mas igualmente caímos todos na soberba de pensar que o percurso que conduz a ser um desterrado da vida humana só acontece aos outros, porque cada um de nós jamais admite que nos pode suceder exactamente o mesmo, seja por desgraças da vida, seja por sermos igualmente vencidos por nós próprios, quando trilhamos caminhos de perigo.
Que os meus espectros sirvam como permanente consciencialização do desamor da nossa sociedade e da soberba de cada um de nós.
Descansem pois no meu banco, que no presépio que faz o Natal ninguém ousa mexer.
ATM
Os primeiros serão aqueles que chegarão pelo meio, final da tarde e, desolados como este Largo, contemplarão as suas vidas, em apeadeiro na linha que irão percorrer até à estação de destino à qual não querem chegar. Sabem, todavia, que têm de ir, que terão de estar presentes numa morada que não é lar, numa relação que não é amor, numa convivência que não é afecto, numa presença que não é companhia, numa festa que não é alegria, numa celebração que sentem culto de coisa alguma.
Sentados, anteciparão a mentira e a farsa que irão representar. Antevêem os rituais, as palavras, as expressões, os votos, os gestos, os actos que, conforme o guião, irão cumprir e consumar, na esperança e ânsia de que finalmente caia o pano de cena e a noite chegue ao fim com o recolher ao leito onde, no isolamento e silêncio, ressurgirá a verdade da ruptura, do afastamento, da exclusão, devolvendo-lhes a dignidade da autenticidade.
Para esses o meu banco hoje é camarim, onde, amarga e envergonhadamente, se caracterizarão, se travestirão, de amantes, pais, filhos, tios, amigos, vizinhos, felizes a viverem o Natal, num espectáculo que se não for arruinado por uma pateada que surja por um erro de casting de algum dos actores, pode até terminar num aplauso comedido de agrado.
Sentam-se, pois, pessoas, e levantam-se actores de comédias trágicas a caminho do palco, e assim partem, deixando o camarim vago para quem dele precisar.
Quando vejo cada um deles partir em passo resoluto, e determinados a cumprir, aplaudo-os e acarinho-os, porque são actores, não são hipócritas, falsos ou fingidores, não são malévolos.
São pessoas cujas encruzilhadas da vida, os encontros e desencontros, os amores e desamores, as esperanças e realidades, os sonhos e os acontecidos, as fantasias e os factos, as tornaram desenraizadas, deslocalizadas, desfocadas, destacadas das vidas que construíram e das pessoas com quem as construíram, estando agora num limbo, num território de ninguém, sem pátria, Não pertencem a lugar algum ou a pessoa que seja. São marinheiros sem navio, navio sem porto.
Não têm maldade, o que não conseguem é ser lúcidos, compreenderem-se, esclarecerem-se, iluminarem-se e, consequentemente, reunir a coragem, determinação e tenacidade para quebrarem as amarras e embarcarem numa nova vida, que seja ela qual for, custe o que custar e doa a quem doer, lhes devolva a identidade da existência, a conformidade entre o ser e o parecer, a verdade, a genuinidade; em suma, a paz e o bem.
Essa nova vida para uns será uma vida alternativa, diversa, oposta, discrepante da vida velha que os consumiu, mas para outros será um regresso à vida original que foi estilhaçada, será o refundar dessa vida, firmando os alicerces e reconstruindo o que possa ter desabado, expurgando tudo e todos os que minem esse edifício.
Qualquer dos caminhos para essa nova vida exige muito, em especial descoberta, verdade, esperança, acção, coragem e renúncia.
São estes dons, virtudes, graças, que eu peço para todos os que usam o meu banco como camarim.
Este Natal será Feliz para os meus actores se, por ventura e inspiração, eles, neste que agora passa, se comprometerem a que no próximo Natal seguirão directos, sem precisar de parar em apeadeiros de refúgio e de adiamento, para os destinos que finalmente escolheram ou finalmente aceitaram, como vidas novas.
Acreditem: essa firme decisão será suficiente para um ânimo e vivência desta noite totalmente diferente da esperada, seja ela um nostálgico e carinhoso adeus ao que se vai deixar, seja ela uma esperançosa saudação de aurora ao que se vai reencontrar.
Saudados os meus actores, detenho agora os meus sentimentos naqueles que, como disse no início, antevejo que passarão pesadas horas no meu banco, nesta noite longa do dia 24 de Dezembro.
Esses chegarão pelo princípio da noite e ficarão por tempo indefinido, como indefinidas são as suas vidas.
Eles são os abandonados ou os que se abandonaram. Eles são os que não resistiram, os vencidos, inclusive por si próprios.
São espectros, são sombras de seres humanos que pairam em memórias, são imagens porque a vida se lhes esvai.
São mendigos, drogados, alcoólicos, desesperados, pobres.
São os destruídos, os destroçados.
Escolhem o meu banco pela mesma razão que escolhem qualquer coisa ou lugar, ou seja por razão nenhuma, já que não há mais razão na sua razão.
Não esperam nada, porque para eles o tempo acabou, o que resta é ir restando, ir cabendo em cada dia que vai passando, e ao qual dão tanto desprezo como dele sempre recebem.
Para eles não há Natal, mas, quando deitados no meu banco, embrulhados nos seus cartões, frios, sujos, com fome, repelentes, eles são o Natal, e o meu banco um altar em que repousam.
Eles são uma anunciação, viva, real, presente, que actualiza e contemporiza o nascimento do Menino Jesus, desafiando cada um de nós a confrontar-se com a evidência que foi isto que nós fizemos da criança que nasceu há 2000 anos.
Eles são o isto em que esse Jesus, menino adorado, se converteu pela desumanidade da humanidade.
O meu banco tem sobre si a realidade do que fizemos àquele menino que nasceu em Belém há 2000 anos.
Tenhamos a coragem de olhar e ver. Tenhamos a hombridade de reconhecer que não é possível que o presépio se tenha convertido nisto.
Como é que, colectiva e individualmente, contribuímos, ou pelo menos não conseguimos evitar, o isto.
O que se terá passado, para sermos agora confrontados com esta realidade, que é a do meu Largo da Boa-Hora, mas podia falar de África, da fome generalizada, das guerras, das injustiças, do desemprego, da constante dor humana infligida por (des)humanos que grassa em malfadada e eterna barbárie que perpetuamos.
Voltarei a escrever sobre este assunto, mas a primeira explicação para o presépio deste Natal, ser o mendigo acoitado no meu banco, é a que colectivamente não cumprimos o mandamento novo de Jesus: “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”.
Se o critério primeiro da obra do Homem fosse o Amor ao próximo, não tínhamos sistemas políticos, económicos e sociais que consentissem, em parte alguma, sequer no mais pequeno foco, as marginalização, pobreza, degradação, exclusão... bestialização de irmãos.
Individualmente falhamos nas virtudes da fraternidade, igualdade e caridade (é por demais óbvio).
Mas igualmente caímos todos na soberba de pensar que o percurso que conduz a ser um desterrado da vida humana só acontece aos outros, porque cada um de nós jamais admite que nos pode suceder exactamente o mesmo, seja por desgraças da vida, seja por sermos igualmente vencidos por nós próprios, quando trilhamos caminhos de perigo.
Que os meus espectros sirvam como permanente consciencialização do desamor da nossa sociedade e da soberba de cada um de nós.
Descansem pois no meu banco, que no presépio que faz o Natal ninguém ousa mexer.
ATM
ATM, não posso estar mais de acordo consigo quando diz que o resvalar no caminho pode acontecer a qualquer um de. É bem verdade. Quando converso com os sem-abrigo e lhes pergunto qual a razão que os levou à rua, a grande maioria responde: olhe, menina, (ou senhora, consoante a idade do próprio...) são as voltas que a vida dá! E nós ? Não sofremos já grandes reviravoltas nas nossas próprias vidas ? Valeu-nos, talvez, a familia mais chegada que, por educação, por vergonha, por amor ou qualquer outro sentimento, bom ou mau, não nos deixou ficar na rua.
ResponderEliminarMaranathá. Bom Natal
Uma pessoa não conseguir cumprir-se, ATM, ou, simplesmente, não ser - como dizia o Pessoa - pode não dever-se à hipocrisia ou à cobardia ou à inércia ou ao desinteresse. Há bloqueios que não dependem da vontade e nos imobilizam. Nunca os sentiu? Um abraço e parabéns pelo texto. É, apesar do meu reparo irrelevante, redentor! RF
ResponderEliminarA Rita Ferro tem razão, nós temos bloqueios Ponto
ResponderEliminarMas cabe-nos ter força e vontade suficientes para os reverter, nem que levemos a vida toda, para o fazer.
E se conseguirmos faze-lo, e Ser, ou Cumprir-mo-nos penso que terá valido a pena a vida.
É dificil, parece muitas vezes inglório, inútil, impossível...
Cada um, é Único, e para cada um de nós haverá "propósitos" diferentes...
Todos temos - a meu ver-caminhos de perigo - ainda que alguns "confortavelmente" se afastem deles- mas é quando atravessamos esses caminhos de perigo - os mais díspares, pesados ou subtis que possam ser- quando os vivenciamos, sentimos, sofremos, e saímos deles, pelo esforço pessoal, que atingimos mais um degrau
Desterrado da vida, não é apenas o pobre, o mendigo, o solitário, o doente, (...)
Há muitos desterrados, noutras formas de desterro
O seu texto é mais uma vez brilhante.
Tomarmos consciência do que somos, pode ser uma parte do caminho para o mudarmos, se assim o entendermos, precisarmos.
É dificil para a maioria ter essa consciência, olhar-se e ver-se, tal qual, de todos os ângulos, os que gostamos e os que não gostamos e preferíamos esconder ou ignorar.
Este ano foi para mim revelador nesse sentido. Depois de descer ao meu inferno pessoal, eu descobri uma evidência (que desconhecia) : Todos temos tudo cá dentro...
Apesar do que sofri nesse percurso, estou imensamente grata à pessoa através da qual eu descobri essa verdade em mim.
Haja Esperança, em cada dia
um abraço,
a.