Quis o meu querido amigo e colega de blogue ATM escrever um magnífico texto na última 4ª feira. Sentado no seu banco, no Largo da Boa-Hora, desenvolveu o tema do perdão. Não são raras as vezes em que ambos discordamos sobre um assunto. Na maioria dos casos saio ganhador, não porque vença com base em argumentos demolidores, mas porque levo do campo de batalha um espólio valiosíssimo e invejável que ele me oferece: argumentos fortes, olhares diferentes, ideias novas. Terminada a peleja, sobra a amizade e a noção do que é verdadeiramente importante. Conversar é já em si bastante.
Não consegui deixar de dissonar de alguns dos pensamentos que fui lendo ao longo do texto. Não pedi licença ao autor para isso, mas pedi-lhe autorização – em nome dos bons princípios de convivência – para retorquir no meu espaço habitual dos Domingos. É o que faço, certo de que não sou detentor de nenhuma verdade inquestionável.
O texto abre com uma frase - não recebi a graça da santidade – que dá corpo à primeira das minhas interrogações / diferenças. Mais do que saber se recebi, de facto, a graça, estou certo de que recebi o desafio. Se assim não fosse, estaria a admitir que, não a tendo recebido, o meu destino era o da certeza da não santidade, do fatalismo da imperfeição. Assumi-lo era entender que algo nos diferencia desde um qualquer momento da concepção: há os que nascem para ser santos, e a nossa curiosidade reside em saber se os conseguimos identificar (ou se eles se identificam a si próprios…). No limite, teríamos de perdoar aos que falham sistematicamente, porque, de facto, não nasceram com uma graça que lhes confere características especiais.
Ora, acredito que todos nascemos com a possibilidade de ser santos. Não a santidade de quem faz milagres, mas a santidade das vidas simples e corriqueiras, que buscam a perfeição numa caminhada vulgar e igual a tantas outras e que não é, de forma alguma, incompatível com tudo o resto: carreiras, conforto, satisfação, qualidade. O desafio está lá – assim como a possibilidade de o cumprirmos - mas o que somos e a nossa circunstância desvia-nos para estradas alternativas.
Mesmo não querendo levar este assunto exclusivamente para a esfera do religioso, socorro-me da Enciclopédia Católica Popular: perdão, em geral, é a resposta magnânima de quem esquece ofensas ou agravos, no desejo sincero duma reconciliação que não deixe ressentimentos. E ainda: perdoar a quem nos tenha ofendido, mesmo aos inimigos que não pedem perdão, é obrigação de caridade que Jesus Cristo, nos seus ensinamentos e na oração do Pai-Nosso, pôs como condição do perdão de Deus para os nossos próprios pecados.
Se me ativesse nesta dimensão cristã do perdão, já arranjaria lenha para alimentar este fogo de discórdia saudável com o meu querido amigo ATM, quando refere, na sua deambulação pelo tema, que perdoar exige contrição e arrependimento do agressor. A sua frase é verdadeira, mas na esfera do Sacramento, não na órbita do mundano.
Entender, face à constatação de que perdoar é raramente possível, que nos resta, como manifestação de bondade, a não represália, a não aplicação da lei de Talião do olho por olho, dente por dente é ficar aquém, muito aquém, deste desafio de ser o primeiro a estender a mão num começo de reconciliação. É não acreditar, ainda, na boa vontade de quem está do lado de lá da contenda e é, talvez, a assunção, tantas vezes presumida, de que do nosso lado está a razão, a única razão que nos confere uma posição de quase sobranceria.
Perdoar tem, como se calhar tudo o que nos puxa para uma certa forma de grandeza, uma dimensão enorme e igual, talvez, de dificuldade e libertação. Não é matéria do divino e está-nos acessível, assim o queiramos. E se sentimos indisponibilidade para perdoar a quem nos tem ofendido – a tal possibilidade rara – como podemos pedir que Cristo perdoe as nossas ofensas?
A nossa imperfeição é uma realidade. Resta saber se ela será, também, uma canga que nos condiciona inevitavelmente, ou se não deveria ser um ponto de partida para uma dimensão mais elevada na forma de reger o nosso destino. Estou longe desta perfeição que aqui advogo como regra de vida, mas não é isso que me impede de querer ser mais alto. A imperfeição é uma realidade, repito, fruto da nossa condição humana. Mas não é uma fatalidade. E se somos inquietados por tantos sonhos que se ligam ao ter, porque não perseguir este que se aplica ao ser?
Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.
JdB
Concordo totalmente, JdB, que a santidade está ao alcance de todos. A santidade é um modo de vida; longe de ser um estado que se atinge e lá se fica (essa é a santidade das "madres Teresas" e dos "Gandhis") a santidade no comum dos mortais é cair e levantar, é pecar e reconciliar, é ser agredido e perdoar, é estar atento, é não calar perante injustiças, é ousar, é desistanlar-se, é ir mais além ... Aquele colega invejoso, traiçoeiro, que me faz a vida negra todos os dias ? É caminho da minha santidade. Aquele vizinho de cima, mal encarado que não cumprimenta ninguém ? É caminho de santidade. O trânsito caótico, violento e agressivo ? É caminho de santidade. Se chegamos lá, não sei ! Mas que é o nosso maior desafio, é.
ResponderEliminarhá dois motores a trabalhar para mim. um fi-lo ao longo dos anos, outro nasceu comigo. quando o primeiro me começou a dar chatices, accionei o segundo, e revelou-se um grande motor. mas os dois pegam-se amiúde, forte e feio. e se se fala de certos assuntos, é uma batalha campal. o original nunca tem dúvidas, para ele tudo é simples e cristalino. o outro mete-se por cada caminho, cada cogitação. uma barulheira insuportável, dá-me cabo do juízo (tenho que o montar outra vez. mas isso é outra conversa). para sobrevivermos, os três, fizemos um acordo - trabalham consoante os seus talentos, sem meterem foice na seara alheia.
ResponderEliminaro perdão, que é do que falamos aqui, é tratado ao nível do primeiro motor. que o outro, já se sabe, põe-se com tretas e não perdoa nada a ninguém (aliás, se tenho delegado nele toda esta explicação, meus amigos, ia J, ia ATM, tudo corrido à chapada).
segreda-me pois o original: tudo se perdoa. só depende do motor de arranque.
Caro JdB,
ResponderEliminarEstou consigo no seu excelente comentário ao texto de ATM.
Um abraço,
fq
Tens um motor que nunca tem dúvidas, DaLhe? Olha... vai-se a ver, chama-se Cavaco!
ResponderEliminar(fora de brincadeiras, o teu comentário está à altura do post: ambos são excelentes!)
Beijos aos artistas.
Mais uma vez este seu amigo deu-lhe a oportunidade de ir muito longe e de ser um vencedor. Obrigada ao amigo que o provocou, a si que se desinstalou e a nós "tocou".
ResponderEliminarBeijinhos
Vá, meninos: perdoem-se um ao outro! Aqui não interessa a teoria, mas a prática. E a prática não é demonstrável com gestos, pois os gestos não provam nada. O perdão deve ser íntimo e total, claro, mas é difícil e, por vezes, inexequível. Não vejo, sinceramente, que nenhum dos interlocutores se contradiga. RF
ResponderEliminarVá, meninos: perdoem-se um ao outro! Aqui não interessa a teoria, mas a prática. E a prática não é demonstrável com gestos, pois os gestos não provam nada. O perdão deve ser íntimo e total, claro, mas é difícil e, por vezes, inexequível. Não vejo, sinceramente, que nenhum dos interlocutores se contradiga. RF
ResponderEliminarDesculpa Ferrugem, não te importas de repetir?
ResponderEliminarJdB,
ResponderEliminarPenso que cheguei lá (ou não!?).
Abraço,
fq