Diário de Amália; data sem interesse, mas podia ser Dia de Ano Novo chinês
Confesso que nunca a frase popular só visto, contado não se acredita, fez tanto sentido na minha vida. Quando entrei no quarto exclusivo de Yuni Siyu e vi o trapézio fixo ao tecto, oscilando mansamente num vaivém, é que confirmei o rumor: havia actividade circense naquela assoalhada.
Confesso que nunca a frase popular só visto, contado não se acredita, fez tanto sentido na minha vida. Quando entrei no quarto exclusivo de Yuni Siyu e vi o trapézio fixo ao tecto, oscilando mansamente num vaivém, é que confirmei o rumor: havia actividade circense naquela assoalhada.
Yuni Siyu é uma chinesa de Dahengqin Dao, uma ilha ao largo de Macau. Sei que as negociações para a sua admissão na Fábrica da Ilusão foram difíceis, longas, exigindo uma paciência oriental. A rapariga, para além de tudo o que seria normal e comum às outras contratações, exigiu um trapézio, dada a sua passagem pelo mundo do circo. Bastava algo simples, como um baloiço de criança, colocado num local específico e definido através de cálculos precisos em função da situação da cama. A Dra. Clara ficou rendida quando ouviu do lado de lá do mundo duas frases proferidas num inglês com forte sotaque:
- Nunca viu nada assim. Não se arrependerá.
Não é fácil descrever o corpo de Yuni Siyu, porque não sei se aquilo é um corpo… No esplendor dos seus exercícios de aquecimento contorce-se de tal forma que duvido que a cabeça, o tronco e os membros não tenham mudado de sítio relativo. Tem um corpo franzino, de adolescente, elástico para além de tudo o que seria normal, e, quando caminha pelo estabelecimento, exibe uma leveza impossível, como se fosse uma brisa ligeira de fim de tarde que entra por uma janela que se abriu.
É a operária preferida do Sr. Vítor, um mestre-de-obras com uma riqueza evidenciada acintosamente, construída em serões eficazes com autarcas sem escrúpulos, multiplicada com habitações de gosto duvidoso e qualidade incerta. É um homem gordo, com manchas teimosas de suor na camisa. Limpa permanentemente o pescoço luzidio com um lenço de papel que observa posteriormente com um interesse científico. Quando entrou na Fábrica da Ilusão pela primeira vez chegou-se ao balcão, atentou com um ar desconfiado na minha cicatriz e na minha perna, como quem vislumbra uma fissura indesejada numa parede – sendo que o indesejado não está na fractura, mas na sua visibilidade - e manteve um monólogo que não abria espaço a respostas:
- Diabo desse olho! E coxa, também… Mesmo que veja, chega lá devagar. E se quiser ir depressa, também não vê por onde anda. Chiça! Olhe lá. Ouvi dizer que anda para aí uma chinesa. É essa que eu quero.
E tirou do bolso das calças descaídas um rolo de notas amachucadas, presas por um elástico, com que gosta de evidenciar o poderio económico e o direito à chinesa - depois de uma feijoada de chocos regada com um tinto da Bairrada.
Nenhuma das raparigas gosta do Sr. Vítor. É desagradável, pouco higiénico, prepotente – e não tira as meias enquanto está na cama. Yuni Siyu não se importa de receber o industrial da obra e explicou-me porquê.
Ao chegarem ao quarto o cliente despe-se rapidamente – mantendo as meias – e deita-se arfante na cama, limpando com uma frequência esfriamentosa o suor das axilas e do pescoço. A chinesa mantêm-se de pé em frente à cama e começa a despir-se com um vagar perturbante e um sorriso felino. Quando retira a segunda peça já começou o exercício de contorcionismo, pelo que o Sr. Vítor confunde a anatomia da rapariga e a nudez das partes. Aquilo que para os outros seria um número de circo, para o cavalheiro é um erotismo popular que ele evidencia, entre outros, através de um salivar crescente e de uns olhos que piscam sem frequência definida.
Yuni Siyu gatinha então para a cama ao som do seu próprio ronronar e do arfar ruidoso do parceiro. No preciso instante em que este se atira para cima dela, naquele desejo incontrolável de sentir um corpo tenro e jovem, propiciador de tantas fantasias juvenis, a chinesa agarra o baloiço e, num passe de mestria, foge-lhe das mãos. Nos 15 ou 20 minutos seguintes revela a sua experiência no circo: baloiça, dá cambalhotas, agita-se de cabeça para baixo, desvaira o cliente tocando-lhe sempre ao de leve como se fosse uma pena, levando-o a prazeres inauditos só com a visão de uma nudez contorcionista.
Quando o tempo está a chegar ao fim, o Sr. Vítor está banhado em suor. Yuni Siyu pendura-se no trapézio pelas mãos e executa uma espargata impossível de amplitude e resistência física. Desce até ao cliente como se fosse uma nave espacial pronta para acoplar e entoa uma toada da sua terra. No preciso instante em que alguém poderia gritar Houston, we have landed, o Sr. Vítor solta um urro, revira os olhos, estica os braços para os lados e pontapeia o ar com umas meias brancas de turco. A chinesa volta a elevar-se, confirmando o diferencial de sincronização: Houston, mission aborted.
No dia em que se estreou com a oriental, o mestre-de-obras passou na portaria, atentou de novo nas minhas falhas físicas, e encetou um monólogo interrogativo, porque não desejava resposta:
- Ver e correr não são para si… Sabe por acaso quem foi o pedreiro que pendurou o baloiço? E como é que se diz lenços de papel em chinês?
Cumpriu-se mais um dia.
MTS
MTS mas que grande imaginação!!!
ResponderEliminarBoa semana.
Maravilha, MTS! Isso é que foi voar!... Rita Ferro
ResponderEliminar- "Houston, mayday, mayday, the ship is on fire..."
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