Se há coisa de que nos podemos orgulhar em Portugal, à vontade e sem acanho, é da colheita literária dos séculos XIX e XX, cujos autores se fizeram ídolos, deuses da palavra e mestres para todos nós. Caídos dia-sim, dia-sim nas janotas livrarias – ohhh à pinha de novidades – os escritores da capital faziam ninho nesses rés-do-chão de puros prazeres. Nos fins de tarde, à luz fraca do petróleo ou do gás, esgueiravam-se lá para dentro, onde quase em segredo conspiravam, dissertavam e nutriam opiniões contra as mentalidades bolorentas e conservadoras. Influenciados por novos autores e filosofias, acaloravam-se, vagueavam pelos cafés e agendavam publicações com os livreiros-editores, ansiosos por deitar cá para fora o que achavam de mais premente. Imbatíveis e incorrigíveis foram Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. A censura não lhes calava o pensamento. O conjunto de textos que compõem as “Farpas”, são prova clara. Quando em 1945 se celebrou o centenário do nascimento de Eça, o jornal católico “Novidades”, a propósito de um concurso aberto a ilustrações para as obras do autor, ainda referia: “Sendo embora um extraordinário artista, não se pode absolver simplesmente da acção nefasta que tem exercido na mentalidade e nos costumes portugueses”.
Se os escritores vincaram Lisboa, no Chiado estão todos os poetas desta vida. Os vivos, os mortos, os muito mortos. E está o palco que viu toda essa gente rir e chorar, cair e levantar-se, amar-se e odiar-se. Mas a memória do Chiado não se faz só de escritores. Por trás deles havia uma avalanche de gente escorrida da grande Revolução de França, no século XVIII, cansada de tumultos, de instabilidade e de perseguições na própria Pátria. Escolheram Portugal e fizeram o que sabiam. A maioria, o que sabia, era vender, editar e encadernar livros. Eles e as suas janotas librairies et ateliers de lecture tomaram corpo e deram alma aos bastidores da trama literária que proliferou em Portugal e que se destacou em todo Mundo.
Entre os emigrantes que chegaram a Portugal nos alvores do século XIX, contava-se João Baptista José Ferin. Belga, filho de um fabricante de carruagens, tinha combatido no exército austríaco a Revolução Francesa. Anos depois, obtinha alvará para fabricar carruagens, tal como seu Pai, mas entretanto casara com Catarina Masson, francesa da Lorena, talvez parente dos Masson editores e livreiros. De um rancho de onze filhos que tiveram, sete deles acabariam por se ligar ao comércio dos livros.
Maria Teresa tinha casado, em 1837, com Pedro Langlet, belga, filho de livreiros, com loja no Cais do Sodré – a Librairie Belge-Française. Em 1840, a livraria, vocacionada ao público francófono residente em Lisboa, muda-se para a Rua Nova do Almada. Seria o princípio da Ferin que ainda existe.
Gertrudes Clara, outra dos sete, fundara um gabinete de leitura (Cabinet de Lecture de M.ell Férin) na Rua Nova do Carmo, onde se podiam alugar e consultar livros, na sua maioria franceses, versando teologia e curiosidades científicas. Esta senhora casa, em 1840, com um encadernador e livreiro francês, há muito em Lisboa, e com loja na Rua da Horta Seca. Nesse mesmo ano, o seu petit Cabinet é inserido na nova livraria da irmã Maria Teresa, e passa a apresentar-se como Cabinet de Lecture de la Librairie Belge-Française.
Em 1853, novas mudanças na Férin. Pedro Langlet e Maria Teresa trespassam-na a um cunhado que vivia com eles, Augusto Férin. Foram fiadoras três irmãs que viviam no Porto. Com a livraria era ainda vendido um depósito de livros que Langlet detinha na ilha de São Miguel, gerido pelo Férin mais novo, Benjamim.
Augusto Férin chamou o cunhado, casado com Gertrudes, encadernador, de nome Manuel Robin, e propôs-lhe sociedade. Transferido também para a Rua Nova do Almada, Robin trouxe à livraria a novidade da encadernação. O nome muda para Librairie Franco-Belge e a designação da empresa passa a ser Librairie Férin et Robin.
Porém, o negócio não correu bem aos cunhados que, no mesmo ano, cedem as posições às irmãs fiadoras. Justina, Ana e Emília receberiam a loja, pagariam o passivo e seriam a salvação. Com elas, a Ferin passa a Librairie Franco-Belge et Atelier de Reliure de Mesdames Ferin. E com elas, também a Ferin é nomeada por D. Pedro V “encadernadora das reais bibliotecas”, isto é, reservava-se-lhes o direito de usar as armas reais junto ao nome e aos símbolos da casa, no frontispício do estabelecimento.
Após quatro anos, e por mais nove contos de réis, os cunhados voltam à carga e tomam posse do negócio. Quando em 1871 morre Manuel Robin, fica Augusto sozinho na gerência da então chamada “Augusto Ferin, Livreiro e Encadernador da Caza Real”. Isto, até 1890, ano em que o seu filho Edwin Ferin, e um genro, prosseguem o negócio, comunicando a mudança de gerência por meio de carta redigida em francês! Nasce, então, a “Livraria Ferin e Companhia”.
Os melhores momentos do estabelecimento contam-se de 1871 até à implantação da República. Foi o tempo dos escritores imporem a sua presença, o tempo das iniciativas editoriais, em que são elaboradas nas oficinas de tipografia e encadernação publicações dirigidas ao público português. Para a história ficou a encadernação de “Os Lusíadas”, edição da Imprensa Nacional, em 1880, que valeu à casa uma medalha de excelência na Exposição Universal de Paris, nove anos depois. Outras preciosidades se prepararam na Ferin: um “Hamlet” traduzido e autografado pelo rei D. Luís, encadernado a verde, e, da colecção do rei D. Carlos, a vermelho, o “Memorial Biográfico de um Militar Ilustre, o General Claudino Pimentel”. Periódicas eram uma revista de Arqueologia, um Almanaque de Genealogia e “O Gafanhoto”, com textos e ilustrações de Tomás Bordalo Pinheiro, para as crianças, que saía de quinze em quinze dias, mas que não teve uma vida longa.
Com a morte de Edwin Ferin e de seu cunhado, Francisco Cunha, em 1903 e 1906, respectivamente, a livraria passa a ser gerida por dois irmãos da viúva, Carlos e Alfredo Marinho da Cruz, mais um colaborador, José Luís da Silva. Em 1910 refazem a sociedade sob o nome “Baptista, Torres e Comandita”, cujos sócios são: a viúva, Maria Amélia Ferin, um irmão seu, Alfredo, sua filha, também Maria Amélia Ferin, e ainda Joaquim Augusto Jorge Baptista, que ficaria apenas até 1913, ano em que a nova designação de empresa se obrigam. “Torres e Comandita” será então a gestora da livraria até 1943. Nesta data, o filho de Maria Amélia Ferin e neto de Edwin, José Luís Dias Pinheiro, entra para a sociedade que é dividida em quotas e renominada por Livraria Ferin, Lda..
José Luís, já licenciado em Direito, foi uma lufada de ar fresco na Ferin. O amor pelos livros, a sensibilidade à riqueza das obras e a sua dedicação e atenção aos interesses dos clientes, levaram-no a alargar o âmbito da livraria, especializando-se em temas como a Genealogia, a História, a Militária, a Heráldica, além de obras sobre Arte, Direito e Jurisprudência. Com a colaboração do seu carismático e veterano empregado, Zacarias Augusto de Carvalho Costa, cuja fisionomia lembrava Cervantes e por isso lhe chamavam “O Fidalgo Aprendiz”, o negócio seguia ligeiro, oferecendo cada vez mais livros raros, adquiridos em catálogos de leilões e fornecendo já a biblioteca do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
As tertúlias que diariamente aconteciam na reputada Ferin, tiveram a presença assídua de um grupo de ilustres senhores, de respeitosa idade, como Francisco Calheiros de Menezes, ex-Embaixador na Santa Sé, e o Visconde da Trindade, investigador de documentos antigos e manuscritos, e autor de diversos ensaios bibliográficos. José Luís nutria amizade e profunda admiração pelos seus companheiros diários, cujos interesses e paixões iam de encontro aos seus.
Quando em 1968, a Mãe, Maria Amélia, morre, resta José Luís e sua Mulher, Maria Isabel Dantas Dias Pinheiro. Em 1974, morre José Luís Ferin, que já tinha deitado ao Mundo nem mais nem menos do que onze filhos!... sete dos quais... abraçam o negócio do pai com a dedicação e o amor pelos livros que este lhes ensinara. Sem editar nada desde 1940, a livraria foi informatizada, tem encomendas para o estrangeiro e um encadernador, dispondo ainda de um departamento de assinaturas de revistas técnicas. Está nas mãos de João Paulo Dias Pinheiro e de sua irmã Margarida, a resistente, a centenária, a sempre elegante Livraria Ferin, que o incêndio de 1988 não transformou em cinzas, vá-se lá saber porquê.
DaLheGas
Se os escritores vincaram Lisboa, no Chiado estão todos os poetas desta vida. Os vivos, os mortos, os muito mortos. E está o palco que viu toda essa gente rir e chorar, cair e levantar-se, amar-se e odiar-se. Mas a memória do Chiado não se faz só de escritores. Por trás deles havia uma avalanche de gente escorrida da grande Revolução de França, no século XVIII, cansada de tumultos, de instabilidade e de perseguições na própria Pátria. Escolheram Portugal e fizeram o que sabiam. A maioria, o que sabia, era vender, editar e encadernar livros. Eles e as suas janotas librairies et ateliers de lecture tomaram corpo e deram alma aos bastidores da trama literária que proliferou em Portugal e que se destacou em todo Mundo.
Entre os emigrantes que chegaram a Portugal nos alvores do século XIX, contava-se João Baptista José Ferin. Belga, filho de um fabricante de carruagens, tinha combatido no exército austríaco a Revolução Francesa. Anos depois, obtinha alvará para fabricar carruagens, tal como seu Pai, mas entretanto casara com Catarina Masson, francesa da Lorena, talvez parente dos Masson editores e livreiros. De um rancho de onze filhos que tiveram, sete deles acabariam por se ligar ao comércio dos livros.
Maria Teresa tinha casado, em 1837, com Pedro Langlet, belga, filho de livreiros, com loja no Cais do Sodré – a Librairie Belge-Française. Em 1840, a livraria, vocacionada ao público francófono residente em Lisboa, muda-se para a Rua Nova do Almada. Seria o princípio da Ferin que ainda existe.
Gertrudes Clara, outra dos sete, fundara um gabinete de leitura (Cabinet de Lecture de M.ell Férin) na Rua Nova do Carmo, onde se podiam alugar e consultar livros, na sua maioria franceses, versando teologia e curiosidades científicas. Esta senhora casa, em 1840, com um encadernador e livreiro francês, há muito em Lisboa, e com loja na Rua da Horta Seca. Nesse mesmo ano, o seu petit Cabinet é inserido na nova livraria da irmã Maria Teresa, e passa a apresentar-se como Cabinet de Lecture de la Librairie Belge-Française.
Em 1853, novas mudanças na Férin. Pedro Langlet e Maria Teresa trespassam-na a um cunhado que vivia com eles, Augusto Férin. Foram fiadoras três irmãs que viviam no Porto. Com a livraria era ainda vendido um depósito de livros que Langlet detinha na ilha de São Miguel, gerido pelo Férin mais novo, Benjamim.
Augusto Férin chamou o cunhado, casado com Gertrudes, encadernador, de nome Manuel Robin, e propôs-lhe sociedade. Transferido também para a Rua Nova do Almada, Robin trouxe à livraria a novidade da encadernação. O nome muda para Librairie Franco-Belge e a designação da empresa passa a ser Librairie Férin et Robin.
Porém, o negócio não correu bem aos cunhados que, no mesmo ano, cedem as posições às irmãs fiadoras. Justina, Ana e Emília receberiam a loja, pagariam o passivo e seriam a salvação. Com elas, a Ferin passa a Librairie Franco-Belge et Atelier de Reliure de Mesdames Ferin. E com elas, também a Ferin é nomeada por D. Pedro V “encadernadora das reais bibliotecas”, isto é, reservava-se-lhes o direito de usar as armas reais junto ao nome e aos símbolos da casa, no frontispício do estabelecimento.
Após quatro anos, e por mais nove contos de réis, os cunhados voltam à carga e tomam posse do negócio. Quando em 1871 morre Manuel Robin, fica Augusto sozinho na gerência da então chamada “Augusto Ferin, Livreiro e Encadernador da Caza Real”. Isto, até 1890, ano em que o seu filho Edwin Ferin, e um genro, prosseguem o negócio, comunicando a mudança de gerência por meio de carta redigida em francês! Nasce, então, a “Livraria Ferin e Companhia”.
Os melhores momentos do estabelecimento contam-se de 1871 até à implantação da República. Foi o tempo dos escritores imporem a sua presença, o tempo das iniciativas editoriais, em que são elaboradas nas oficinas de tipografia e encadernação publicações dirigidas ao público português. Para a história ficou a encadernação de “Os Lusíadas”, edição da Imprensa Nacional, em 1880, que valeu à casa uma medalha de excelência na Exposição Universal de Paris, nove anos depois. Outras preciosidades se prepararam na Ferin: um “Hamlet” traduzido e autografado pelo rei D. Luís, encadernado a verde, e, da colecção do rei D. Carlos, a vermelho, o “Memorial Biográfico de um Militar Ilustre, o General Claudino Pimentel”. Periódicas eram uma revista de Arqueologia, um Almanaque de Genealogia e “O Gafanhoto”, com textos e ilustrações de Tomás Bordalo Pinheiro, para as crianças, que saía de quinze em quinze dias, mas que não teve uma vida longa.
Com a morte de Edwin Ferin e de seu cunhado, Francisco Cunha, em 1903 e 1906, respectivamente, a livraria passa a ser gerida por dois irmãos da viúva, Carlos e Alfredo Marinho da Cruz, mais um colaborador, José Luís da Silva. Em 1910 refazem a sociedade sob o nome “Baptista, Torres e Comandita”, cujos sócios são: a viúva, Maria Amélia Ferin, um irmão seu, Alfredo, sua filha, também Maria Amélia Ferin, e ainda Joaquim Augusto Jorge Baptista, que ficaria apenas até 1913, ano em que a nova designação de empresa se obrigam. “Torres e Comandita” será então a gestora da livraria até 1943. Nesta data, o filho de Maria Amélia Ferin e neto de Edwin, José Luís Dias Pinheiro, entra para a sociedade que é dividida em quotas e renominada por Livraria Ferin, Lda..
José Luís, já licenciado em Direito, foi uma lufada de ar fresco na Ferin. O amor pelos livros, a sensibilidade à riqueza das obras e a sua dedicação e atenção aos interesses dos clientes, levaram-no a alargar o âmbito da livraria, especializando-se em temas como a Genealogia, a História, a Militária, a Heráldica, além de obras sobre Arte, Direito e Jurisprudência. Com a colaboração do seu carismático e veterano empregado, Zacarias Augusto de Carvalho Costa, cuja fisionomia lembrava Cervantes e por isso lhe chamavam “O Fidalgo Aprendiz”, o negócio seguia ligeiro, oferecendo cada vez mais livros raros, adquiridos em catálogos de leilões e fornecendo já a biblioteca do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
As tertúlias que diariamente aconteciam na reputada Ferin, tiveram a presença assídua de um grupo de ilustres senhores, de respeitosa idade, como Francisco Calheiros de Menezes, ex-Embaixador na Santa Sé, e o Visconde da Trindade, investigador de documentos antigos e manuscritos, e autor de diversos ensaios bibliográficos. José Luís nutria amizade e profunda admiração pelos seus companheiros diários, cujos interesses e paixões iam de encontro aos seus.
Quando em 1968, a Mãe, Maria Amélia, morre, resta José Luís e sua Mulher, Maria Isabel Dantas Dias Pinheiro. Em 1974, morre José Luís Ferin, que já tinha deitado ao Mundo nem mais nem menos do que onze filhos!... sete dos quais... abraçam o negócio do pai com a dedicação e o amor pelos livros que este lhes ensinara. Sem editar nada desde 1940, a livraria foi informatizada, tem encomendas para o estrangeiro e um encadernador, dispondo ainda de um departamento de assinaturas de revistas técnicas. Está nas mãos de João Paulo Dias Pinheiro e de sua irmã Margarida, a resistente, a centenária, a sempre elegante Livraria Ferin, que o incêndio de 1988 não transformou em cinzas, vá-se lá saber porquê.
DaLheGas
Olá, JdB. Será que me podia dizer onde encontrou toda esta informação? Obrigada
ResponderEliminarBoa tarde. Obrigado pela visita - ou pelo acaso que o trouxe aqui.
ResponderEliminarO post não é meu, mas de uma amiga que assinava com Dalhegas. Se quiser, posso tentar enviar o seu comentário para a autora (já não estou em contacto com ela há algum tempo) para que ela responda.
JdB