02 março 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia da morte de Carlos Gardel

A entrada do cliente foi antecipada por um aroma forte e quente, talvez sândalo. Alguns instantes depois chegou o portador daquele perfume. Aproximou-se do balcão, cumprimentou-me educadamente e estendeu-me um cartão-de-visita onde um itálico de estilo duvidoso identificava o cavalheiro:

Adalberto Barbosa. Tricampeão regional de danças de salão. Estabelecimento próprio. Aulas por marcação, faço domicílios.

O Sr. Barbosa é um homem de estatura média, magro, com um bigode fininho aparado sem erros, e um cabelo liso, cinzento e penteado para trás, composto por um fixador que lhe dá um ligeiríssimo brilho. Quando se aprochegou de mim, pressuroso, assomaram-lhe à boca as palavras com que enceta, provavelmente, a sua aproximação comercial.

- Talvez a menina esteja interessada. Milongas? Quickstep?

Olhando para a minha perna, percebeu que os requisitos para se ser boa dançarina não se cumpririam com a eficácia desejada. Compôs uma madeixa que julgou vaguíssimamente desarrumada e corrigiu:

- Eventualmente uma valsa inglesa…

A Dra. Clara veio à porta do escritório e, com aquela perspicácia sempre surpreendente, não hesitou na indicação:

- Amália: chame a Esperanza, se faz favor.

Esperanza Morales é uma argentina de Pipinas, junto ao Rio de la Plata. Integrou durante alguns anos um clube nocturno em Buenos Aires, uma cave escura inundada do som erótico do bandonéon, de fotografias de Gardel e de fumo de cigarro. Veio para Portugal atrás de um industrial nortenho que a seduziu com promessas de uma casa de praia na Póvoa do Varzim, um negócio emergente no ramo têxtil - e um Ferrari arrumado numa vivenda do Vale do Ave.

Percebeu o logro ao fim de poucos meses, e foi contratada pela Dra. Clara que soube desta rapariga através de uma rede de contactos fortes, seguros e eficazes, uma espécie de olheiros futebolísticos em versão contratação feminina. Esperanza tinha duas lágrimas fortes que lhe escorriam pela cara e uma figura esguia, insinuante e arruivada, além de uma fotografia do seu clube nocturno, debruada a branco e azul-celeste, com uma inscrição saudosa: Mi Buenos Aires Querido…

Esperanza Morales e Adalberto Barbosa dirigiram-se para o quarto, deixando para trás o aroma forte do sândalo e do fixador à base de óleo de castor. Com a porta fechada, o professor de música revela uma dimensão pragmática e optimizadora do dinheiro dispendido. Tem uma hora, como quem ensina o foxtrot a uma iniciada entre as seis e as sete da tarde. Reduz a luz do quarto até ao nível da escuridão lasciva e acende um cigarro, que deixa a consumir lentamente num cinzeiro, enquanto o fumo sobe num bailado voluptuoso.

Esperanza e Adalberto estão nus, integralmente nus, quando das colunas de som se começa a ouvir a voz inconfundível de Carlos Gardel

Acaricia mi ensueño
el suave murmullo
de tu suspirar.
Cómo ríe la vida
si tus ojos negros
me quieren mirar.

Na Fábrica das Ilusões dança-se o tango – dolente, erotizante, lascivo, sem as roupas que tolhem os movimentos e impedem o contacto da pele. Dois corpos desnudos envolvidos no silêncio de quem tem uma ideia superior da dança de salão. Um quarto, uma voz imorredoura, passos estudados e executados com a precisão de quem respira em uníssono.

Quando Gardel, o imortal, canta a estrofe

El día que me quieras
la rosa que engalana
se vestirá de fiesta
con su mejor color

Esperanza deita lágrimas nostálgicas que lhe escorrem pelo peito pequeno e trigueiro; Adalberto Barbosa, o professor que foi tricampeão e faz domicílios, beija-o, como quem oscula uma rosa sem espinhos. Deitam-se depois na cama, onde se amam com um sincronismo intuído, quais parceiros com décadas de pista num rodopiar perfeito. Têm no coração os recuerdos de Pipinas, Buenos Aires, clubes nocturnos, taças que se erguem na vitória de mais um campeonato regional.

- O que é para ti o tango, Esperanza?

- El tango, Adalberto de mi corazón, es un pensamiento triste que se baila.

O mestre da valsa, do jive, da rumba, acende um cigarro e retém uma emoção. A definição que já conhecia, dita por aquela operária espojada numa nudez vertiginosa e sul-americana, ganha foros comoventes. Ao seu lado, Esperanza sonha com Abasto, o bairro onde morou Gardel, e suspira a lonjura. Sentado na cama, o professor solta uma baforada de fumo e cantarola num dueto impossível com o grande mestre do tango:

El día que me quieras
no habrá más que armonía

Quando passa por mim na recepção oferece um sorriso amável, sincero, aberto sem cerimónia por debaixo de um bigode fininho e aparado sem erros.

- Eventualmente uma valsa inglesa, menina Amália…

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

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