Há muito que deixámos de ser tribais, há algum tempo que deixámos de ser comunitários.
A aldeia foi substituída pelo bairro, este pela rua e esta pelo condomínio, e este é tão opaco que a vizinhança se reduz à partilha de elevador.
Vivemos dispersos e separados uns dos outros, com barreiras e distâncias que nos afastam.
Hoje, a amizade, e até a família, exercem-se por marcação, como qualquer outro serviço. É preciso combinar previamente, ajustar agendas, conciliar disposições, tirar a senha para o encontro.
O estar juntos, que antes resultava do casual e natural encontro de quem coincidia nos mesmos espaços e tempos de existência, é agora, para acontecer, um acto premeditado, planeado.
A geografia e geometria separam cada vez mais e, paradoxalmente, com a cumplicidade das novas tecnologias de contacto (intencionalmente não as designo de comunicação) como seja o sms, o telemóvel e o email.
Nunca vi um sms comunicar uma lágrima ou um sorriso, nunca vi um telemóvel desvendar um olhar de ternura ou de dor, nunca um email abraçou alguém.
A comunidade tornou-se um imenso arquipélago, em que cada núcleo familiar restrito é uma ilha, e no qual as águas são tão profundas que é sempre preciso barca e barqueiro para nos visitarmos, e está sempre sob um denso nevoeiro tal que nem consente o irmo-nos vendo à distância de um aceno.
Resultado: abandonamo-nos reciprocamente.
Pergunto-me porque é que as coisas são assim. Não culpo apenas as distâncias físicas que nos separam, busco e encontro outras explicações, que aqui deixo para reflectirmos.
A primeira é que interiorizámos, como paradigma civilizacional, que pouco ou nada precisamos dos outros, e estes pouco ou nada precisam de nós.
Numa lógica de predominância de valores materiais, o “outro” perde importância à medida que vai estando assegurada a nossa auto-suficiência material.
Cada núcleo familiar restrito constrói permanentemente a sua independência, a sua autonomia, a sua capacidade de sobrevivência, com recursos próprios, um ter tudo o que se quer, mesmo que seja algo de uso ocasional ou temporário.
Partilhar teres e haveres não faz parte da actual lógica; o “emprestar”, o “dispensar”, o “dividir”, não fazem parte do modelo da sociedade (que ironia, o sentido da palavra sociedade é precisamente o oposto…)
No mesmo sentido, o apelo aos outros para ajudar num empreendimento já não faz qualquer sentido. Quando antes se chamava a “malta” para ajudar a varar o barco na praia, hoje recorre-se ao mercado, e compra-se a tarefa.
Concorre igualmente para o isolamento a falta de entrega a causas, projectos e acções, comuns e comunitárias, a militância social, cultural, recreativa.
Pertencer-se e dedicar-se a um grupo de teatro amador ou de canto, aos bombeiros voluntários, ao grupo recreativo do bairro, à junta de freguesia, à paróquia, ou ao que seja de todos e para todos, à vivência colectiva, é hoje uma raridade que torna o participante numa “ave rara”, num “carola” ou num “santo”, que não se consegue explicar sem um juízo de extravagância, hoje que nem para administrador do condomínio se consegue encontrar um voluntário…
Tornámo-nos todos egocêntricos com ambições e quereres de auto-suficiência e indiferença ao colectivo. Trilhamos, assim, caminhos de isolamento e alheamento.
Todavia, não nos culpabilizemos demasiado. É que concorrem para estas atitudes, para estes comportamentos de isolamento, a justificada preocupação que a vida de cada um nos origina, a angústia destes dias plenos de preocupações que vão correndo sucessivamente em desgaste e temor do amanhã. Na verdade, há medo e esgotamento, e estes originam a busca do refúgio no núcleo restrito, na “casa” de cada um.
É real a componente da exaustão que marca as nossas vidas, de um cansaço que paralisa e predispõe para a fuga do refúgio da “casa”, sem querer ouvir, ver ou saber de mais nada. Até pelo temor de que o contacto com os outros possa originar mais trabalhos, empenhos e preocupações.
Não é despicienda esta vertente de moral e espiritualmente estarmos a ser consumidos, diria até arruinados, por um sistema, por uma máquina trituradora que sobrevive e se alimenta do nosso esgotamento, da nossa mecanização, do sermos autómatos num quotidiano ditado por um “big brother”.
Para muitos, o bálsamo de cada dia é “não haver problemas”. Para quê procurá-los por via do confronto com os outros, quando aliás nos reconhecemos incapazes, sem ânimo ou força, para ajudar?
Muito do nosso “autismo” actual advém da sensação de já nem forças termos para levar a nossa “canga”, quanto mais as dos outros.
A meu ver, importa inverter este estado de coisas, porque, na realidade, e como desde sempre, nós precisamos dos outros e os outros precisam de nós. Necessidade que se não é premente e actual no domínio do ter, o será seguramente no domínio do ser.
O caminho pode estar no conformarmo-nos com as contingências e limitações modernas, que são inevitáveis pela actual natureza das coisas, sem, todavia, prescindir do objectivo de estarmos uns com os outros. Trata-se, pois, de refundar os paradigmas desse convívio.
Basicamente, prescindir do acessório, do mundano, do convencional e protocolar e retomar a essência do encontro, do contacto.
Redescobrir a autenticidade e simplicidade do convívio, despindo-o de tudo o que é supérfluo para aproveitar e desfrutar o que temos de realmente importante para dar e receber do outro.
Como me dizia alguém, “sentimentalizar” a relação, por oposição à prática da sua “materialização”.
No concreto, falo de inovar tempos, modos e espaços de encontros, proponho passeios por parques e jardins onde estavam cinemas e saídas nocturnas em diversões; proponho tertúlias de conversa ao serão onde estavam jantares em restaurantes; proponho hospitalidade sem mais que dar do que nós próprios; proponho redescobrir a visita como tal, e não como acontecimento social.
Muitas serão as formas de inovar no modo de nos relacionarmos, que serão tão mais gratificantes quanto mais descomprometidas com o “social”, e mais empenhadas no reforço de uma intimidade e autenticidade de partilha.
Voltemos a encontrar-nos como que por acaso. Ficcionemos a imprevisibilidade e deixemos o improviso acontecer.
Mas tal não bastará. Tenhamos presente que estarmos juntos é uma riqueza, é um bem escasso, pelo que teremos que elevar o conteúdo desses momentos, não os desperdiçando com banalidades e vulgaridades, seja de atitudes, seja de pensamentos, seja de comunicações.
Estou certo que nos reencontraremos mais e melhor.
ATM
A aldeia foi substituída pelo bairro, este pela rua e esta pelo condomínio, e este é tão opaco que a vizinhança se reduz à partilha de elevador.
Vivemos dispersos e separados uns dos outros, com barreiras e distâncias que nos afastam.
Hoje, a amizade, e até a família, exercem-se por marcação, como qualquer outro serviço. É preciso combinar previamente, ajustar agendas, conciliar disposições, tirar a senha para o encontro.
O estar juntos, que antes resultava do casual e natural encontro de quem coincidia nos mesmos espaços e tempos de existência, é agora, para acontecer, um acto premeditado, planeado.
A geografia e geometria separam cada vez mais e, paradoxalmente, com a cumplicidade das novas tecnologias de contacto (intencionalmente não as designo de comunicação) como seja o sms, o telemóvel e o email.
Nunca vi um sms comunicar uma lágrima ou um sorriso, nunca vi um telemóvel desvendar um olhar de ternura ou de dor, nunca um email abraçou alguém.
A comunidade tornou-se um imenso arquipélago, em que cada núcleo familiar restrito é uma ilha, e no qual as águas são tão profundas que é sempre preciso barca e barqueiro para nos visitarmos, e está sempre sob um denso nevoeiro tal que nem consente o irmo-nos vendo à distância de um aceno.
Resultado: abandonamo-nos reciprocamente.
Pergunto-me porque é que as coisas são assim. Não culpo apenas as distâncias físicas que nos separam, busco e encontro outras explicações, que aqui deixo para reflectirmos.
A primeira é que interiorizámos, como paradigma civilizacional, que pouco ou nada precisamos dos outros, e estes pouco ou nada precisam de nós.
Numa lógica de predominância de valores materiais, o “outro” perde importância à medida que vai estando assegurada a nossa auto-suficiência material.
Cada núcleo familiar restrito constrói permanentemente a sua independência, a sua autonomia, a sua capacidade de sobrevivência, com recursos próprios, um ter tudo o que se quer, mesmo que seja algo de uso ocasional ou temporário.
Partilhar teres e haveres não faz parte da actual lógica; o “emprestar”, o “dispensar”, o “dividir”, não fazem parte do modelo da sociedade (que ironia, o sentido da palavra sociedade é precisamente o oposto…)
No mesmo sentido, o apelo aos outros para ajudar num empreendimento já não faz qualquer sentido. Quando antes se chamava a “malta” para ajudar a varar o barco na praia, hoje recorre-se ao mercado, e compra-se a tarefa.
Concorre igualmente para o isolamento a falta de entrega a causas, projectos e acções, comuns e comunitárias, a militância social, cultural, recreativa.
Pertencer-se e dedicar-se a um grupo de teatro amador ou de canto, aos bombeiros voluntários, ao grupo recreativo do bairro, à junta de freguesia, à paróquia, ou ao que seja de todos e para todos, à vivência colectiva, é hoje uma raridade que torna o participante numa “ave rara”, num “carola” ou num “santo”, que não se consegue explicar sem um juízo de extravagância, hoje que nem para administrador do condomínio se consegue encontrar um voluntário…
Tornámo-nos todos egocêntricos com ambições e quereres de auto-suficiência e indiferença ao colectivo. Trilhamos, assim, caminhos de isolamento e alheamento.
Todavia, não nos culpabilizemos demasiado. É que concorrem para estas atitudes, para estes comportamentos de isolamento, a justificada preocupação que a vida de cada um nos origina, a angústia destes dias plenos de preocupações que vão correndo sucessivamente em desgaste e temor do amanhã. Na verdade, há medo e esgotamento, e estes originam a busca do refúgio no núcleo restrito, na “casa” de cada um.
É real a componente da exaustão que marca as nossas vidas, de um cansaço que paralisa e predispõe para a fuga do refúgio da “casa”, sem querer ouvir, ver ou saber de mais nada. Até pelo temor de que o contacto com os outros possa originar mais trabalhos, empenhos e preocupações.
Não é despicienda esta vertente de moral e espiritualmente estarmos a ser consumidos, diria até arruinados, por um sistema, por uma máquina trituradora que sobrevive e se alimenta do nosso esgotamento, da nossa mecanização, do sermos autómatos num quotidiano ditado por um “big brother”.
Para muitos, o bálsamo de cada dia é “não haver problemas”. Para quê procurá-los por via do confronto com os outros, quando aliás nos reconhecemos incapazes, sem ânimo ou força, para ajudar?
Muito do nosso “autismo” actual advém da sensação de já nem forças termos para levar a nossa “canga”, quanto mais as dos outros.
A meu ver, importa inverter este estado de coisas, porque, na realidade, e como desde sempre, nós precisamos dos outros e os outros precisam de nós. Necessidade que se não é premente e actual no domínio do ter, o será seguramente no domínio do ser.
O caminho pode estar no conformarmo-nos com as contingências e limitações modernas, que são inevitáveis pela actual natureza das coisas, sem, todavia, prescindir do objectivo de estarmos uns com os outros. Trata-se, pois, de refundar os paradigmas desse convívio.
Basicamente, prescindir do acessório, do mundano, do convencional e protocolar e retomar a essência do encontro, do contacto.
Redescobrir a autenticidade e simplicidade do convívio, despindo-o de tudo o que é supérfluo para aproveitar e desfrutar o que temos de realmente importante para dar e receber do outro.
Como me dizia alguém, “sentimentalizar” a relação, por oposição à prática da sua “materialização”.
No concreto, falo de inovar tempos, modos e espaços de encontros, proponho passeios por parques e jardins onde estavam cinemas e saídas nocturnas em diversões; proponho tertúlias de conversa ao serão onde estavam jantares em restaurantes; proponho hospitalidade sem mais que dar do que nós próprios; proponho redescobrir a visita como tal, e não como acontecimento social.
Muitas serão as formas de inovar no modo de nos relacionarmos, que serão tão mais gratificantes quanto mais descomprometidas com o “social”, e mais empenhadas no reforço de uma intimidade e autenticidade de partilha.
Voltemos a encontrar-nos como que por acaso. Ficcionemos a imprevisibilidade e deixemos o improviso acontecer.
Mas tal não bastará. Tenhamos presente que estarmos juntos é uma riqueza, é um bem escasso, pelo que teremos que elevar o conteúdo desses momentos, não os desperdiçando com banalidades e vulgaridades, seja de atitudes, seja de pensamentos, seja de comunicações.
Estou certo que nos reencontraremos mais e melhor.
ATM
ATM, não posso estar mais de acordo consigo. Não há dúvida que o outrora importante ser foi abolido e substituido pelo ter e agora assiste-se à substituição do estar pelo enviar (sms, mails, piscadelas, emoções gráficas, etc..). Já ninguém está, pelo simples prazer de estar. É preciso fazer renascer as tertúlias, os passeios, os pic-nics, a gargalhada espontânea, os contadores de anedotas, a tarde passada à beira-mar sem mais objectivo que não esse mesmo. Sempre que pudermos e onde pudermos, combatamos o autismo social.
ResponderEliminarATM, carradas de razão. Tarde demais. Esta inversão ou aumento da importância do privado sobre o social, é um realiddade tão forte, tão consolidada, tão genética já, que até a evolução, assustadoramente repressiva, dos meios de comunicação, se faz com o único objectivo, de evitar o contacto físico entre os indivíduos. Mas tentemos pois, quebrar isso. Desafio cada um dos leitores deste blog, a convidar 4 amigos para jantar em sua casa neste próximo sábado.
ResponderEliminarVolte sempre e se eu o conhecesse, teria muito gosto em convidá-lo para jantar com a minha família.
Apoiado, Maria do Mar; e se por acaso os leitores deste Blog forem amigos entre si, por favor não se degladiem para decidir em casa de quem vão jantar este Sábado ! :-) O desafio da MM pode ser válido para qualquer Sábado, verdade ?
ResponderEliminarMaf, obrigada pelo apoio. Qualquer sábado é válido. Vamos ver o que acontece e se alguem desafiar os amigos do blog que vá dizendo que foi por sugestão do movimento "estarmos juntos é uma riqueza" cujo presidente é o ATM.
ResponderEliminarATM,
ResponderEliminarConcordo com todos, os comentadores deste blog, que também são muito especiais.
Não faço ideia da idade das pessoas envolvidas neste blog, todas as semanas, mas penso que nos está a chegar a todos a nostalgia das nossas infâncias.
Os nossos Avós que nos contavam estórias, que nos ensinavam com simplicidade as coisas mais sérias da vida, etc.
Talvez tenha chegado a altura, de quando abrimos o correio, não encontrarmos só contas para pagar, ou promoções de empréstimos fáceis, ou códigos de cartões de plástico.
Talvez tenha chegado a altura de começarmos a fazer os convites para os tais "jantares", com uma carta manuscrita, e se calhar, como as meninas antigamente faziam, que iam aos batons das mães e deixavam um beijinho na carta, e depois pegavam no lacre e lacravam as cartas com o seu monograma.
É maravilhoso, receber ainda uma carta de um amigo. Recebi uma à uns meses e fiquei tão feliz....
Parabéns a todos e até sempre aqui nos mesmos dias....
Vê ATM, foi de viagem e encontro marcado, e tem aqui as suas amigas à espera para a tertúlia. :)
ResponderEliminarNo sítio onde moro (no centro de uma cidade junto ao Porto), as colectividades proliferam, são ainda ponto de encontro, e vivência colectiva de muitos sobretudo de meia idade, mas onde mais novos começam também a aderir e a juntar-se ao bando. A casa, é também essa, pois de famílias de amigos, se trata.
Mas tem razão em (quase)tudo o que diz, parece que precisamos de tirar senha para o encontro...
parecemos demasiado envolvidos nas próprias lides, nos próprios dramas, nas próprias vidas e umbigos, para permitirmos um delicioso e imprevisto fluir "ocasional", para partilharmos momentos não agendados, forjarmos horários impensáveis, ou seguirmos impulsos imprevistos.
Reencontrar amigos, quebrar rotinas, partilhar momentos, espaços e tempos de qualidade, sem relógio, sem culpa.
A única coisa com que não concordo é na não leitura de uma lágrima, ou de uma dor, através destes novos pontos de contacto. E sim, podemos fingir melhor através de um sms, ou de um mail. E até podemos enganar alguém desprevenido e desatento, e seria mais difícil faze-lo presencialmente (para alguns pelo menos que não conseguem mentir).
O que eu queria dizer é que costumo olhar além do óbvio,do factual e proferido, tento pelo menos, perceber o não dito, aquela fina camada de humanidade que se subentende, no tom de voz, nas pausas, nos tiques, na respiração, o que me diz as imagens, os símbolos, os silêncios.
Um mail não abraça, mas as palavras lidas também confortam. Uma palavra assim, não substitui um abraço, um silêncio partilhado, um carinho. Mas na falta deste, também nos aconchega a alma se na hora certa, reconforta-nos o coração.
Porque, " na realidade, e como desde sempre, nós precisamos dos outros e os outros precisam de nós", e a prova disso mesmo está na sua ausência.
Não lhe deixo mais abraços, só palavras, então.
a.