Eram seis da tarde e o sino da Igreja Paroquial repicava chamando os fiéis para a missa da tarde. Os meus pensamentos - o Marco, a vida, os anseios, a temperatura morna de dois corpos que se enroscam durante a noite - eram embalados por um pôr-do-sol manso e lento, e por uma brisa talvez fresca de mais. Fui arrancado aos meus devaneios pelo som electrónico do telefone. Do lado de lá da linha (ou de um satélite, sei lá eu…) uma voz que revelava algum nervosismo perguntou:
- Boa tarde. Posso marcar hora com uma das raparigas?
- Muito boa tarde. Com certeza que sim. Tem alguma preferência ou quer deixar ao meu critério?
- Talvez seja melhor aceitar o seu critério.
- Pois muito bem. Quer dizer-me o seu nome?
- Álvaro Marques… Espere, talvez seja melhor Adalberto Marinho.
- São duas pessoas? Em simultâneo?
- Talvez, talvez… Acho que sim, não sei bem.
- Vai ter de aguardar um momento para eu falar com a Dra. Clara. Quer ligar-me daqui por 15 minutos?
- Com certeza.
Dirigi-me ao gabinete da Dra. Clara que consultava alguns mapas com estatísticas diversas: grau de satisfação de clientes e raparigas, taxa de ocupação, tendências das fantasias, contratações em mercados emergentes, relatos de fetiches com burkas, etc. De facto, a situação de duas pessoas em simultâneo com uma das nossas raparigas era inédita e carecia de autorização superior. A voz parecia-me educada, mas sabe-se lá o que uma voz pode esconder.
Depois de alguma ponderação – e consultada a rapariga em questão – escolhemos a Mary Jo, uma norte-americana do Missouri. Era uma rapariga alta, forte, muito loira, vinda directamente de Jefferson City, a capital do Estado, situada nas margens do rio com o mesmo nome. Mary Jo encarou a experiência como um desafio à sua performance competitiva, à sua vontade de ganhar dinheiro, ao enriquecimento do seu palmarés, ao possível ascendente em relação às colegas da Casa. Iria preparar-se, física e psicologicamente, mas avançaria, naquela perspectiva de que não há impossíveis para um americano.
Passava pouco das oito horas da noite quando assomaram à porta. Um cavalheiro de estatura média, óculos redondos de lentes grossas, um casaco puído e fora de moda chegava-se ao balcão, ligeiramente incomodado com a minha cicatriz, facto que demonstrou recuando instintivamente um passo, como se quisesse assumir uma posição de defesa perante um animal feroz. Ou talvez, simplesmente, esta visão abrupta e súbita da realidade lhe perturbasse o prenúncio de fantasia.
- Senhor Álvaro Marques?
- Sim, sou eu.
- A Mary Jo está à vossa espera, vou já mandar chamá-la. O senhor Adalberto Marinho demora-se?
O cliente pigarreou e limpou os óculos com um lenço azul claro, onde um A e um M se entrelaçavam como ramos de hera atraídos por um magnetismo tecido a vermelho. Percebi nitidamente o seu nervosismo, revelado por uns lábios perlados de suor e uma testa húmida em permanência.
- Não se incomode, caso o seu amigo esteja atrasado. A Mary Jo aguardará. Estou certo de que vos proporcionará uma hora de satisfação. É uma rapariga profissional e atenta, vinda dos EUA. Está cá, ao abrigo de uma bolsa, para terminar um estudo sobre Gestão de stocks na época dos descobrimentos - a visão do Infante D. Henrique. Um tema fora do vulgar, mas, estou certo, precioso nesta época em que vivemos de desperdício e consumismo, crise e escassez.
O cavalheiro guardou o lenço, colocou os óculos e voltou a atentar nas minhas deficiências físicas.
- Enfim. O meu nome é Álvaro Marques.
- Sim, sim, já me tinha dito.
- Mas o meu nome é também Adalberto Marinho. Percebe a coincidência de iniciais?
- Estou a ver.
- O que se passa é que tenho um problema com uma identidade dupla. Eu sou um e sou o outro, e ambos são diferentes entre si, coabitando no mesmo corpo, tendo os mesmos hábitos básicos de higiene, as mesma necessidades comezinhas de alimentação. Mas nem sempre sei quem é quem. Ou melhor: quem sou eu em cada momento. Daí a minha dúvida sobre o cliente que viria cá. Percebe, D. Amália?
- Com certeza, senhor Adalberto Marinho. Ou será Álvaro Marques?
- Pois não sei muito bem. É uma convivência difícil dentro deste corpo anónimo e de altura mediana.
Ao fundo do corredor, Mary Jo assomou deslumbrante num roupão de seda cor-de-rosa, ligeiramente aberto, naquela medida certa que não anuncia um oferecimento banal mas revela uma nudez perturbadora. Surgiu alta, passadas largas e firmes, sorriso aberto nuns dentes de primeiríssima qualidade, fruto de tecnologia norte-americana. Notei-lhe um desânimo quase imperceptível pelo facto do trio erótico já não se realizar, como se, num repente, o Iraque desaparecesse do mapa antes da invasão vencedora, deixando o exército num estado compreensível de inactividade desalentada. Cumprimentou-o, profissional e ofereceu-lhe o braço. Havia uma diferença óbvia de alturas, com predominância clara para o Novo Mundo.
- Tenha uma boa hora, senhor... -, desejei-lhe solícita, não sabendo com qual dos personagens falava.
O cliente olhou para o lado, vislumbrando um seio generoso e uma coxa forte por baixo de uma seda fina. Tentou acompanhar a passada larga da americana que vinha do Missouri para investigar a gestão de stocks no séc. 15 e balbuciou um desabafo:
- Quem me dera ser dois…
De facto, quantos somos dentro de nós?
Cumpriu-se mais um dia.
MTS
Podemos ser dois, três, ou o que a nossa imaginação o permitir. Temos de saber qual dos nossos eus é mais adequado ao contexto e qual o que nos pode "oferecer" mais satisfação. Este MTS está cada vez melhor.ACC
ResponderEliminarMTS,
ResponderEliminarParabéns mais uma vez.
Penso que nunca de deva sentir só, pois, a sua vida interior, fervilha e é muito rica.
Até para a semana..
Cris: obrigado pelo seu comentário. Às vezes sinto-me só; às vezes, de facto, dentro de mim está uma multidão...
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