27 abril 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia de S. Gabriel, padroeiro dos correios.

Meu querido Igor, amor do meu coração,

Levantei-me descrente da previsão meteorológica. Do apartamento onde vivo ouvem-se, ao longe, rumores de ondas a bater nas rochas, respira-se um ar de maresia que encanta, tão diferente do que temos em Moscovo.

Tinha algum tempo antes da aula seguinte neste instituto onde ensino os poetas russos - a sua profundidade, o seu patriotismo e devoção à Mãe Rússia. Assim, fui dar uma volta rápida até à praia, sorver o ar salgado, senti-lo na pele e nos cabelos, deixar-me envolver por uma qualquer inspiração que me leve a escrever esta carta, e que ela te revela a felicidade em que vivo, apesar da tua ausência.

O mar estava batido, fruto do mau tempo que tem assolado esta área do país. A praia, completamente deserta, era varrida por ondas que iam e vinham com uma cadência própria, indiferentes à minha vontade. Soprava um vento forte, mas, mesmo assim, virei a cara para o enfrentar. Fechei os olhos e, por momentos, estavas ali comigo: as tuas mãos delicadas de pianista, os teus cabelos desgrenhados tão característicos de qualquer artista, os teus olhos oscilando entre o vivo de quem apanha tudo à volta e o absorto de quem se refugia num mundo próprio. Sentei-me numa rocha e observei a tonalidade do mar, entre o azul claro e o azul-escuro, com manchas esverdeadas salpicadas de espuma branca. Senti-te ao meu lado.

Não sou escritora, não te saberia descrever poeticamente o ambiente que me rodeava. Há uma sensação difícil de partilhar na visão de um temporal. Haverá quem se atemorize, quem seja vencido por tristezas, quem se refugie na segurança e conforto de um lar. Eu quis vivê-lo, porque é no vento forte, na ameaça de chuva, no presságio de trovoadas que me elevo e vivo, sigo em frente, me confronto com as dificuldades, encontro criatividade e força para ultrapassar obstáculos.

Não deixei de sorrir. Tudo parece conjugar-se para levar a bom porto o que me trouxe aqui: um emprego regular a ensinar o que a Rússia produz de melhor em termos de literatura, um dinheiro que vou juntando para compormos a nossa vida. Na visão quase em permanência do mar - algo que se vai tornando perigosamente viciante - suspiro pelo tempo em que nos poderemos abraçar, ler juntos ao som dos nossos clássicos. Quero olhar para ti e sentir que acreditas quando te digo que és o homem da minha vida, e que a passagem por este país não é mais do que o intervalo para um segundo acto - tu e eu - que se adivinha glorioso.

Guardo todos os meus abraços para ti, amor da minha vida. Tua, Olga.

Olga, a russa licenciada em Literatura cuja avó foi protegida da Czarina e cita os poetas quando recebe clientes, não é mentirosa. Traduziu-me a carta que escreveu ao seu namorado e, no seu rosto, não havia vestígios de desonestidade, laivos de um espírito enganoso. Estou certo de que quando ela fechou os olhos e a escreveu, vertendo lágrimas saudosas sobre um papel de média qualidade, viu o mar, sentiu o ar salgado, tentou vislumbrar a rotina certa das ondas que se desfazem num areal vazio. Há cartas que se escrevem às escuras, sem ver as letras que se ordenam ao longo de linhas direitas, sem atentar na precisão da pontuação, sem qualquer preocupação sobre as palavras escolhidas, porque as mais verdadeiras são as que nos saem da ponta de uma caneta sem que passem pelo crivo da artificialidade.

É neste mundo que Olga vive, porque quando desperta para a realidade e olha pela janela vê o tapume do prédio que vai sendo demolido junto a esta Fábrica da Ilusão. O ruído ambiente não é o das gaivotas que planam sobre o mar, mas o dos martelos pneumáticos que destroem tijolo e cimento. O cheiro não é o da maresia, mas o dos corpos humanos, do pó que anda pelo ar, das águas-de-colónia baratas ou inexistentes que classificam quem lhe entra pelo quarto adentro. Quando destapa os ouvidos não é Rachmaninoff que ouve, mas a frase fatal,

- Olga, tem aqui um cliente
.

ainda que dita com um tom de voz simpático, de quem tenta conciliar humanidade e rentabilidade.

Olga, a rapariga alta e de olhos esverdeados que veio de Moscovo, não mente. É naquele mundo que ela vive, porque o outro (será o da realidade ou da fantasia?) não é mais do que um devaneio. Todos temos luz e sombra, assumidas de forma própria por quem se olha ao espelho da vida. De facto, quantos somos dentro de nós?

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

6 comentários:

  1. MTS,
    Acerca de 25 anos ouvi uma palestra, no Instituto que frequentei, de Agostinho de Silva.
    Ouvi com muita atenção, pois ele, tinha o dom da palavra, a expôr os seus pontos de vista utopicos e anarquas sobre a vida e como se deveria viver essa vida. Ele dizia que era cidadão do mundo e que nem B.I. tinha, e que não pagava impostos.
    O Mundo apelidou-o de Filosofo dos tempos modernos.
    Conclusão: Loucos, filosofos, Olgas, nós....
    A nossa mente não tem limites, nós vamos quando e onde queremos.
    Até para a semana e parabéns.

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  2. Cris: obrigado pela sua visita semanal. A ilimitação de algumas mentes como a da Olga (deixaremos o Agostinho da Silva de fora, por motivos óbvios de humildade) é uma caixa de Pandora: dali sai a fuga, a imaginação (a louca da casa...), o refúgio, a sobrevivência. Escrever sobre o mar com um tapume pela frente é um privilégio. Mas pode ser uma condenação.
    MTS

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  3. MTS,
    as Olgas, as Amálias, as Lauras, todas estas mulheres que você nos vem dando a conhecer todas as semanas, são afinal pedacinhos de cada um de nós, homens ou mulheres, destes tempos modernos, destes tempos sem fronteiras, destes tempos em que cada pessoa tem, forçosamente, de vestir várias peles para poder sobreviver.
    As suas Olgas, na alma, são tão inocentes como as meninas de Velasques.

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  4. MAF:obrigado pela visita. De facto, nenhum destes personagens é muito original, no sentido de serem unicos. Um dia, Jorge Luis Borges disse: eu sou as minhas personagens.

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  5. Esqueci-me de assinar. MTS, óbvio... E a resposta de Jorge Luis Borges, aqui retirada de algum contexto, dirigia-se á pergunta sobre quem era ele.

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  6. MTS :-), conheço pouco Borges, mas o que dele li, gostei muito. Vou certamente aprofundar. Obrigada pela sugestão.

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