12 junho 2009

a caminho do verão, sempre.


interrompo hoje a minha recente série de "posts mais poéticos", em regra da minha própria autoria (o que se deve notar, digo eu, desde logo pela imperfeição neles decerto reinante..), para partilhar convosco uma pequeníssima reflexão.

há uns dias atrás, a caminho do estúdio de rádio onde, semana após semana, tenho vindo a gravar o programa 'estação de inverno', o meu olhar cruzou-se com um rapaz, manifestamente afectado por uma daquelas doenças do foro neurológico (e perdoem se cometo algum erro de palmatória) que fazem com que quem delas padece sofra de descoordenação motora, sendo muito difícil executar a generalidade dos movimentos que no nosso quotidiano nos são tão colados à pele que nem neles reparamos.

ao passar pelo rapaz, apeteceu-me dizer: "levanta-te e anda!". ou, mais humildemente, dizer algo numa versão mais de acordo com a nossa (dele e minha) escala humana. mas dizer..

assaltava-me uma dúvida, uma inquietação pueril: porque é que, ao som de uma palavra mais assertiva, mais decidida, todo o sistema neuromotor não se pode simplesmente regenerar, partir do zero, recomeçar, reconfigurar, fazer um "reboot"? porquê?

bem sei que estes pensamentos sofrem porventura de um elevado grau de ingenuidade. mas, por vezes, é a candura, a simplicidade, aquela pergunta certeira de feição mais naif, que nos conduz à construção de "insights" sobre nós próprios, sobre o mundo, sobre a nossa relação com o mundo.

ao pensar nestas coisas, numa fracção de segundo, pensei imediatamente noutras tantas, como dizer, adjacentes:

a) senhoras e senhores que teimam em não entender os meus dias de fragilidade emocional, os meus recorrentes períodos de neblina, percebam de uma vez por todas que, se fosse assim tão simples, seria eu o primeiro a dizer a mim próprio as palavras mágicas: "levanta-te e caminha, rapazola!". e eu levantar-me-ia, de súbito, metafórica e talvez literalmente, vigoroso e fresco que nem uma alface, recuperado da ressaca interior, para logo fazer em passo estugado aquilo que é tão naturalmente simples, para tanta e tanta gente que conheço: segui em frente, sem mazelas de maior. acham que alguém gosta de trazer o inverno pela mão? que alguém gosta de habitar nas sombras? que alguém prefere o seu lado lunar, podendo escolher reinos mais solares? não me parece.

b) caríssimo gi: nem todas as pessoas têm a tua capacidade de sistematizar intelectualmente certos temas, de os decompor em fracções para logo os reordenar, de gerar análises mentais de forma quase automática, de ler os detalhes de forma intuitiva, de construir cenários xadrezísticos sobre tudo e a propósito de nada, de exercer uma certa arte da força interior, em ambientes profissionais mais hostis. e, ao disto teres consciência, deves usar mais candura, mais tolerância, para com os outros, ser menos "brutal" nos julgamentos que, por vezes, fazes. entendes, amigo gi? porque também eles, também elas, muitas vezes são intrinsecamente "incapazes" (pelo menos, da mesma forma que tu) de realizarem esses complexos varrimentos mentais, de articularem assertivamente certos pensamentos, transformando-os em gestos fortes, oportunos, consequentes. às vezes, nem sequer se apercebem, entendes?

dali atrás até aqui, foi um passinho.

e sai-te ao caminho a mesma frase que, há um par de anos, te fulminou, enquanto aguardavas pelo verde de um semáforo, algures numa qualquer encruzilhada desta luminosa cidade que tanto amas e que tão impiedosamente te castiga, em dias de chumbo:

"porque a inteligência, em todas as suas declinações, é uma qualidade; mas a bondade é um dom. um dom."

tento lembrar-me disto todos os dias. mesmo naqueles em que a anunciada primavera me traz apenas uma chuva de canivetes. talvez um dia, algum mais generoso 'great scheme of things' me explique o que tudo isto quer - ou quis - dizer, durante o meu tempo de vida.

gi.

4 comentários:

  1. caro gi, de facto a sua inteligência e prosa estão muito para além da compreensão desse rapazola de movimentos descoordenados; e muitos dos seus posts estão para alem da minha própria compreensão, eu, que tenho todos os movimentos bem controladinhos :-) Mas em todos eles (posts) reconheço sempre uma ou outra palavra de nobre carácter, de elevado sentimento. Hoje, a palavra elegida foi a bondade. Bondade que, para mim, significa também, amor, caridade e entrega. Quase sempre detecto por detrás das (suas) palavras caras, sentimentos simples e genuinos. Estarei errada ? Perdoe-me a veleidade.

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  2. Caro Gi,
    Fiquei embevecida como a sua prosa. Para além de conseguir dum nada, fazer um quase tudo, teve a enorme capacidade de me inquietar a alma. Percebi que afinal tenho um dom e tornei-me numa pessoas sem qualidades.
    Há muitos anos que me convenceram que a minha maior qualidade é ser uma boa pessoa. Sempre achei uma qualidade menor, e ainda hoje não entendo o que querem dizer com isso. Não sinto "isso" como diferenciador, como útil, como dinamizador do mundo e dos outros. Quando me dão exemplos da minha bondade, não sinto "isso" como excitante, apenas como uma naturalidade tão natural, que nem a identifico.
    Depois de ler a frase que o fulminou, fiquei verdadeiramente irrequieta. Percebi que a minha bondade é afinal um dom. Podia ter dons artísticos como cantar, pintar ou dançar. Não, apenas tenho o dom da bondade. Uma “ bondosite” aguda que me faz olhar para o menino da paralisia cerebral e dar-lhe um beijo na testa, ou limpar a baba incontrolável que lhe vai manchando os calções.
    Sabe Gi, isto não vende bilhetes.

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  3. Caro gi: como editor e dono deste estabelecimento, não é vulgar comentar os textos dos meus queridos companheiros de estrada. Abro uma quase excepção, para uma afirmação, uma concórdia e uma discórdia.
    Parabéns pelo texto. Muito bom.
    A bondade é um dom. Concordo.
    A inteligência não é forçosamente uma qualidade. Passa a sê-lo quando a utilizamos para o bem comum. Estou errado?
    Abraço.

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  4. cara maf,

    muito obrigado, antes de mais, pelo seu comentário. escrever é também interpelar, mesmo que em silêncio (ou sem eco, se quisermos). não me parece que tenha incorrido em qualquer veleidade, esteja descansada. mas também não me parece que eu escreva 'palavras caras' para 'sentimentos simples'. diria antes que escrevo, por vezes, de forma complexa, não por exuberância estilística, mas sim porque a vida é para mim incontornavelmente complexa, cheia de esquinas, de ângulos fortes, de toda uma vasta paleta de geometrias nem sempre afáveis. mas talvez sejam os meus olhos que a tornam especialmente complexa, confesso que não sei bem..
    em todo o caso, o meu obrigado. e sim, a palavra-chave desta vez é bondade (e, talvez, a tolerância, enquanto exercício exigente, mas necessário).

    --

    cara ana cc,

    muito obrigado, por me ler e pelo comentário que me/se/nos dirige - seguramente não muito fácil de articular, pela exposição que exige..
    entendo perfeitamente cada palavra do seu texto. deparo-me, não raras vezes, perante esse paradoxo que é o aparente vale de lágrimas a que a bondade na terra parece condenar certas pessoas. vivemos tempos conturbados, tempos próprios para falcões de tenra idade, para cultores ferozes da vertigem e do instante, para domadores inclementes de si próprios (santos do seu próprio altar, por assim dizer). por isso mesmo, ao ler as suas palavras, o estremecimento foi meu. muito próximas as suas palavras de algumas que uma querida amiga - pessoa humanamente superlativa - me dirigiu, ainda ontem, sobre si própria. qual o lugar dos bons, dos justos? conheço algumas respostas, de cariz mais religioso e/ou metafísico. mas.. e para aqueles a quem esses planos parecem vedados? como (sobre)viver? não sei, não possuo as respostas..
    'isso não vende bilhetes', pois não. e ao ler isso impossível de evitar uma lágrima furtiva..

    --

    caro jb,

    muito obrigado, por me ler e pela excepção que me concedeu, ao comentar o meu textinho.
    diria assim:
    a) não concordo com a sua afirmação (é apenas um texto sincero e esforçado, talvez pertinente, aceito..);
    b) concordo, por maioria de razão, com a sua 'concordância';
    c) e, apesar de não o ter escrito de forma explícita, concordo absolutamente com a sua (aparente) 'discordância': sim, a inteligência, tal como a assertividade, o controlo das emoções e muitas outras 'qualidades', não é uma qualidade absoluta em si mesma. infelizmente, abundam os exemplos, nas largas avenidas da História, mas também nas pequeninas ruelas das nossas humanas histórias particulares, de como a má utilização das qualidades pode conduzir uma nação, um povo, um grupo de pessoas, um indivíduo, nós próprios, a sítios desprovidos de sentido positivo, de grandeza civilizacional, de respeito pela integridade e pelo desenvolvimento de todos os - e de cada um dos - homens.

    a todos, o meu obrigado e as simbólicas flores de sempre,

    gentilmente,

    gi.

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