Como vem sucedendo em todos os anos, passei os feriados de Junho numa estância balnear a desfrutar a família, os amigos, a praia, o sol e o mar.
Dias magníficos de descanso, distracção e renovação.
Mas o que me inspira esta crónica não é a exaltação da “vida de praia”, que é essência de mim, mas uma constatação que me surpreendeu e que, de certa forma, me perturbou.
Ao longo da vida, estes lugares de férias, frequentados sazonalmente com fidelidade, adquiriram uma “mística” própria e exclusiva que os identificava e distinguia dos outros congéneres.
O lugar de veraneio que ao longo dos anos fosse o nosso, era percepcionado, sentido e vivido como um espaço “próprio”, constitutivo da nossa entidade, integrante do nosso mundo. A universalidade desse local formava um todo que nos pertencia e ao qual nós pertencíamos, numa relação de posse e propriedade, constantemente afirmada e confirmada ao longo dos anos.
Com o “sítio” eleito estabelecia-se uma relação de essência, de intimidade, de identificação, que o tornava coisa fraterna, preferida, única e exclusiva.
O “eu “ e o “sítio” eram companheiros e amigos, em anos e anos seguidos de fidelidade, de encontros religiosamente repetidos, com separações por tempo e razões sabidas e certas.
Ao “sítio” o “eu” dava a presença, a acção da sua vida, o percurso do seu crescimento e amadurecimento, deixando espalhado pelas calçadas, areais, ondas do mar, banhos de lua, esplanadas, e por todo o espaço e tempo, os sonhos, os amores, as alegrias, as esperanças, os feitos e as glórias, os insucessos e os falhanços, o riso e o choro, o encontro e o desencontro. Em suma, o “sítio” recebia e guardava do “eu” a memória de um tempo que ia passando no acontecer de uma vida.
Em cada verão, e num ápice, o “sítio” acolhia as confissões do inverno que ficara para trás, e sustentava os ideais, sonhos e projectos para o tempo vindouro. Logo nos primeiros dias, o passado era absolvido e o futuro prometido, senão mesmo garantido, ficando então o presente para ser vivido nesse enlevo com o “sítio”.
O “sítio” era o guardião da vida passada, a génese do optimismo para o futuro e o palco da felicidade presente. Tudo, pois, azul.
E o “sítio”, o que dava ao “eu” em contrapartida do que este lhe entregava?
É na conclusão desta contrapartida que me emaranho em análises e vejo e revejo tudo, para concluir que essa retribuição, em que se alicerçava e que permitia a relação estabelecida, era afinal muito simples, mesmo muito simples.
O recebido pelo “eu” era a perenidade, a constância, a imutabilidade do sítio.
Em cada reencontro ele estava como fora deixado a cada partida, tudo na mesma para viver o mesmo.
Cada reencontro era um voltar para o colo protector, para o regaço de uma mãe eterna, que sempre estava e estaria à espera, para um acolhimento de consolo, de mimo, de paz e tranquilidade, para serenar e animar.
Este sentir uma terra como colo materno provinha de, ao chegar, sentir estar-se a alcançar quem espera, sem se modificar, sem se transfigurar, para ser logo reconhecida e querida, para desde longe correres sem hesitações para os seus braços por reconheceres todos os traços desse regaço desejado.
As mesmas ruas, casas, igreja, monumentos e jardins, as mesmas lojas, praia, doca, barcos. O sol, o mar e o céu de sempre
Os sons, os cheiros, as cores, os ventos e aragens, as sombras e os soalheiros, sempre conformes com aqueles que a memória chamava nos momentos de saudade.
As pessoas de lá (habitantes, transeuntes, comerciantes, artífices, pescadores e gentes de docas, banheiros, e vizinhos) sempre os mesmos, sempre idênticos, sempre reconhecidos e que nos conheciam. Lá, as crianças permaneciam crianças, os jovens mantinham-se jovens, e os velhos estavam somente um pouco mais velhos, mas tudo com ínfimas variações que não afectavam o quadro de conhecimento, intimidade, reciprocidade, cordialidade e simpatia, caldeado por anos de contacto e companhia.
As pessoas veraneantes formavam uma “tribo” que se identificava e reconhecia como tal e agia em ritos de grupo, em matilha, numa partilha de espaços, tempos e modos de acontecer que fraternizava a relação grupal.
Essa perenidade, estabilidade, durabilidade, previsibilidade do “sítio”, conferia ao “eu” inestimável segurança, serenidade, equilíbrio, calma e, sobretudo, paz.
O reencontro no presente com o que foi o nosso passado gerava a tranquilidade de se ser e pertencer a algo que nos surgia eternamente nosso, disponível, hospitaleiro e desejado.
Nada pacificava mais do que ocupar o mesmo pedaço de areia na praia, olhar à volta e ver os mesmos de antes, conhecer cada canto e recanto do lugar e das pessoas que o animavam; numa síntese: poder não privar com ninguém e com todos falar, poder andar sem dinheiro e tudo comprar, poder andar sem chaves e em todo o lugar entrar.
Pois é, mas esses “sítios” acabaram, perderam-se, deixaram, pura e simplesmente, de ser assim.
Numa voragem tudo se perturbou, corrompeu, modificou e transformou.
As casas e edificações que eram as referências passaram a blocos de apartamentos, os espaços livres foram ocupados, as ruas foram esventradas por avenidas, as lojas são de ramo ou natureza diferente, as rotinas acabaram, o toldo é chapéu-de-sol, o banheiro é nadador-salvador, o cliente é consumidor, o interesse pelos “pequenos” pela “senhora” e pelos “paizinhos”, passou à pergunta quantos são? e, sobretudo, como vai a saúde do cartão de crédito.
Num ápice, a sólida e fiável civilização ancestral (porque durou a vida do “eu”) transformou-se numa plataforma de circulação de pessoas e bens, anónimos, indiferentes, misturados, alienados, indiferentes. Tudo é, definitivamente, “pastiche”, um deambular de anónimos entre anónimos.
Os “sítios”, de tantos revolvidos e adubados de novidades, secaram, desertificaram, e hoje são pedaços na vida de alguém, mas nunca mais refúgios de essência, guardiões de memória, recantos de história.
São plataformas logísticas na indústria das férias.
Se reflicto sobre isto não é por saudosismo, não é por renegar o processo e desenvolvimento, não é por ser contra a democratização e maior acesso de todos a tudo. É apenas porque sinto e sei quanto o sítio foi importante para mim, e temo que a falta dele possa ser bem marcante e penosa para os jovens que nunca o conhecerão.
Crescer e tornar-se adulto sem “sítio” e “tribo” é um desafio imenso para a juventude. Não os invejo.
ATM
Dias magníficos de descanso, distracção e renovação.
Mas o que me inspira esta crónica não é a exaltação da “vida de praia”, que é essência de mim, mas uma constatação que me surpreendeu e que, de certa forma, me perturbou.
Ao longo da vida, estes lugares de férias, frequentados sazonalmente com fidelidade, adquiriram uma “mística” própria e exclusiva que os identificava e distinguia dos outros congéneres.
O lugar de veraneio que ao longo dos anos fosse o nosso, era percepcionado, sentido e vivido como um espaço “próprio”, constitutivo da nossa entidade, integrante do nosso mundo. A universalidade desse local formava um todo que nos pertencia e ao qual nós pertencíamos, numa relação de posse e propriedade, constantemente afirmada e confirmada ao longo dos anos.
Com o “sítio” eleito estabelecia-se uma relação de essência, de intimidade, de identificação, que o tornava coisa fraterna, preferida, única e exclusiva.
O “eu “ e o “sítio” eram companheiros e amigos, em anos e anos seguidos de fidelidade, de encontros religiosamente repetidos, com separações por tempo e razões sabidas e certas.
Ao “sítio” o “eu” dava a presença, a acção da sua vida, o percurso do seu crescimento e amadurecimento, deixando espalhado pelas calçadas, areais, ondas do mar, banhos de lua, esplanadas, e por todo o espaço e tempo, os sonhos, os amores, as alegrias, as esperanças, os feitos e as glórias, os insucessos e os falhanços, o riso e o choro, o encontro e o desencontro. Em suma, o “sítio” recebia e guardava do “eu” a memória de um tempo que ia passando no acontecer de uma vida.
Em cada verão, e num ápice, o “sítio” acolhia as confissões do inverno que ficara para trás, e sustentava os ideais, sonhos e projectos para o tempo vindouro. Logo nos primeiros dias, o passado era absolvido e o futuro prometido, senão mesmo garantido, ficando então o presente para ser vivido nesse enlevo com o “sítio”.
O “sítio” era o guardião da vida passada, a génese do optimismo para o futuro e o palco da felicidade presente. Tudo, pois, azul.
E o “sítio”, o que dava ao “eu” em contrapartida do que este lhe entregava?
É na conclusão desta contrapartida que me emaranho em análises e vejo e revejo tudo, para concluir que essa retribuição, em que se alicerçava e que permitia a relação estabelecida, era afinal muito simples, mesmo muito simples.
O recebido pelo “eu” era a perenidade, a constância, a imutabilidade do sítio.
Em cada reencontro ele estava como fora deixado a cada partida, tudo na mesma para viver o mesmo.
Cada reencontro era um voltar para o colo protector, para o regaço de uma mãe eterna, que sempre estava e estaria à espera, para um acolhimento de consolo, de mimo, de paz e tranquilidade, para serenar e animar.
Este sentir uma terra como colo materno provinha de, ao chegar, sentir estar-se a alcançar quem espera, sem se modificar, sem se transfigurar, para ser logo reconhecida e querida, para desde longe correres sem hesitações para os seus braços por reconheceres todos os traços desse regaço desejado.
As mesmas ruas, casas, igreja, monumentos e jardins, as mesmas lojas, praia, doca, barcos. O sol, o mar e o céu de sempre
Os sons, os cheiros, as cores, os ventos e aragens, as sombras e os soalheiros, sempre conformes com aqueles que a memória chamava nos momentos de saudade.
As pessoas de lá (habitantes, transeuntes, comerciantes, artífices, pescadores e gentes de docas, banheiros, e vizinhos) sempre os mesmos, sempre idênticos, sempre reconhecidos e que nos conheciam. Lá, as crianças permaneciam crianças, os jovens mantinham-se jovens, e os velhos estavam somente um pouco mais velhos, mas tudo com ínfimas variações que não afectavam o quadro de conhecimento, intimidade, reciprocidade, cordialidade e simpatia, caldeado por anos de contacto e companhia.
As pessoas veraneantes formavam uma “tribo” que se identificava e reconhecia como tal e agia em ritos de grupo, em matilha, numa partilha de espaços, tempos e modos de acontecer que fraternizava a relação grupal.
Essa perenidade, estabilidade, durabilidade, previsibilidade do “sítio”, conferia ao “eu” inestimável segurança, serenidade, equilíbrio, calma e, sobretudo, paz.
O reencontro no presente com o que foi o nosso passado gerava a tranquilidade de se ser e pertencer a algo que nos surgia eternamente nosso, disponível, hospitaleiro e desejado.
Nada pacificava mais do que ocupar o mesmo pedaço de areia na praia, olhar à volta e ver os mesmos de antes, conhecer cada canto e recanto do lugar e das pessoas que o animavam; numa síntese: poder não privar com ninguém e com todos falar, poder andar sem dinheiro e tudo comprar, poder andar sem chaves e em todo o lugar entrar.
Pois é, mas esses “sítios” acabaram, perderam-se, deixaram, pura e simplesmente, de ser assim.
Numa voragem tudo se perturbou, corrompeu, modificou e transformou.
As casas e edificações que eram as referências passaram a blocos de apartamentos, os espaços livres foram ocupados, as ruas foram esventradas por avenidas, as lojas são de ramo ou natureza diferente, as rotinas acabaram, o toldo é chapéu-de-sol, o banheiro é nadador-salvador, o cliente é consumidor, o interesse pelos “pequenos” pela “senhora” e pelos “paizinhos”, passou à pergunta quantos são? e, sobretudo, como vai a saúde do cartão de crédito.
Num ápice, a sólida e fiável civilização ancestral (porque durou a vida do “eu”) transformou-se numa plataforma de circulação de pessoas e bens, anónimos, indiferentes, misturados, alienados, indiferentes. Tudo é, definitivamente, “pastiche”, um deambular de anónimos entre anónimos.
Os “sítios”, de tantos revolvidos e adubados de novidades, secaram, desertificaram, e hoje são pedaços na vida de alguém, mas nunca mais refúgios de essência, guardiões de memória, recantos de história.
São plataformas logísticas na indústria das férias.
Se reflicto sobre isto não é por saudosismo, não é por renegar o processo e desenvolvimento, não é por ser contra a democratização e maior acesso de todos a tudo. É apenas porque sinto e sei quanto o sítio foi importante para mim, e temo que a falta dele possa ser bem marcante e penosa para os jovens que nunca o conhecerão.
Crescer e tornar-se adulto sem “sítio” e “tribo” é um desafio imenso para a juventude. Não os invejo.
ATM
Do que constato por aí, há que distinguir crescer sem "sítio" e crescer sem "tribo", pois que, efectivamente, da juventude se trata.
ResponderEliminarO "sítio" existe (quase) sempre, por muito que a juventude circule, a menos que os pais sejam nómadas. Por norma o sítio é onde passaram a juventude e verifico, inequivocamente, que todos eles consideram seu o sítio onde viveram, onde vivem os seus pais e avós.
Já a tribo, existe uma atomização da mesma, no sentido que lhe atribuímos, pois o convívio pessoal desaparece; há uma tentativa de manter a tribo unida pela internet, mas não é a mesma coisa. mas o que verifico é que vão criando tribos pontuais de acordo com o local em que se encontram e sobrevivendo, com dificuldade, mas sobrevivendo,que têm 20 anos e aguentam.
Tenha um bom dia
MM
Gostei da figura do "colo materno" em que se transformam os nossos "sítios" e as nossas "tribos" e do conforto que representam.
ResponderEliminar"(...)tudo se transforma", é inevitável.
Continuo por aqui às Quartas. Dá gosto.
Parabéns ATM.
moc
ATM,
ResponderEliminarSinto o mesmo e não o descreveria melhor.
A expressão do vou para a "Terra" estas férias, é no fundo, a busca da identidade, do colo, dos cheiros, das memórias, e do retemperar de energias. Verdadeiro Património.
Dou-lhe um exemplo, quando à 2 anos, revisitei o sítio onde passei 20 e tal anos de férias, tive um choque, aconteceu presisamente o que descreveu.
As pessoas também são muito culpadas, pois de repente mudam de sítios, e os toldos dantes cheios de caras conhecidas, deixaram de lá estar...
Mas mesmo assim tive uma alegria, na primeira noite que saí, vi já bastantes caras conhecidas, pois muitas pessoas dos nossos grupos de então, voltaram.
Penso que só damos valor às coisas e aos sítios quando os perdemos.
Ao reecontra-los, não tivemos o previlégio de crescer com eles.
Quanto aos jovens, eles hoje têm uma capacidade enorme de arranjarem os seus sítios e as suas tribos.
Basta dizer que nem na rua já podem brincar, ao contrário da nossa geração que passámos os dias na rua, a brincar com os amigos do nosso bairro.
Quantas horas de bicicleta, patins, salto do elástico, jogo da macaca, às escondidas, entre os poucos carros estacionados nas ruas.
Hoje jogam Wii, porque estão em casa, por questões de segurança.
Os jovens são mágicos.
Até para a semana.....
ATM, revi-me totalmente em tudo o que disse. De facto,o "sitio" e a "tribo" que aconteciam todos os anos, durante os 3 meses de férias grandes, fazem parte de cada um nós, hoje; deixaram marcas indeléveis; muitos deles deixaram mais do que simples marcas, já que muitas vidas em comum, muitos casamentos surgiam no seio das tribos. E, sim, faz dó voltar ao "sitio" e não ver a Ti Maria a vender pevides, ou não ver a "casa amarela" porque agora está lá um prédio, ou não poder fazer um picnic no descampado porque agora está lá um parque de estacionamento. Ainda ontem commentava com um amigo : que pena tenho de não poder dar ao meu filho um "sitio" como o que os meus pais me deram :-)
ResponderEliminarAté quarta, tenha uma excelente semana.
Caro ATM:
ResponderEliminarPercebo o sentimento das suas palavras como se de um designio urbanístico e arquitetónico se tratassem. A mim toca-me as recordações desse maravilhoso patrimonio mundial:O DOURO, onde regresso para captar, sucessiva e diferentemente nos muitos movimentos dos socalcos, epocas e idades, que são parte da sua essência.
Talvez por isso seja o DOURO...e os seus lugares de gentes, para aqueles que a conheceram à mais tempo, uma saudade sempre viva, a par de uma saudade morta. A partilha em simultaneo de uma gratidão e de uma perda à maneira de quem ao nosso lado vai envelhecendo.
A vida dantes era mais arrumada... Arrumada no tempo, no espaço, nas gentes. Sabiamos sempre o que vinha depois. Essas experiências e esses lugares impregnaram de tal forma a minha alma que tomei posse deles para sempre.São meus.Não obstante os prédios, as avenidas, os desconhecidos... sempre que volto, revivo e vivo. Não com saudade, mas com confiança, com a certeza de que nem nada nem ninguém me os pode tirar. Isso nunca.t
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