Não precisamos de ler, estudar ou conhecer ninguém, quando produzimos nós próprios. Pois não basta que produzamos nós próprios? E gostemos de nós próprios? Que nos pode dar o espírito alheio, quando sobre o próprio nosso desceu em línguas de fogo a sabedoria de tudo? Melhor: A verdade é que nem precisamos nós próprios de produzir (toda a produção é uma limitação), ou mal precisamos de produzir, para usufruirmos as vantagens do criador e produtor. (...) Aprende a contar uma anedota; duas anedotas; três anedotas; quatro anedotas... uma anedota diverte muita gente; quatro anedotas divertem muito mais... aprende a polvilhar de blague todas essas ideias sérias, pesadas, profundas, obscuras, - ao cabo simplesmente maçadoras - com que pretendes sufocar (...); aprende a cultivar aquele subtil espírito de futilidade que ligeiramente embriaga como um champanhe, e a toda a gente agrada, lisonjeia todos, por a todos nos dar a reconfortante impressão de pertencermos ao mesmo meio... estarmos ao mesmo nível; não queiras ser nem sobretudo sejas mais inteligente ou mais sensível, mais honesto ou mais sincero, mais trabalhador ou mais culto, mais profundo ou mais agudo... numa palavra: superior. Sim, homem! aprende a ser como os outros, dizendo bem ou mal de tudo e todos - conforme - sem os excederes nem te comprometeres demasiado; e deixa-me lá esses Proustes e esses Gides e esses Dostoievskis e esses Tolstois (vem aí o tempo em que todos esses jarrões serão levados para o sótão!), deixa-me essa estética e essa mística e essa metafísica e essa ética (já o tempo chegou de se ver a inutilidade e o ridículo dessa pretensiosa decoração), deixa-me lá esses estrangeiros, e essas estrangeirices.
José Régio, in 'Presença, Folha de Arte e Crítica, 1927-1940'
José Régio, in 'Presença, Folha de Arte e Crítica, 1927-1940'
confesso que nunca li nada de José Régio, mas nunca o imaginei tão light! ou tão amargo em relação à espécie humana! ou, se calhar, tão lúcido quanto aos nossos podres. gosto de pensamentos. pcp
ResponderEliminarJoão, concordo em absoluto: leveza e simplicidade precisam-se…
ResponderEliminarMas acha que posso continuar a citar, de vez em quando, uma frasezita do Eça ou do Ramalho? É que eles dizem as coisas tão melhor do que eu! ;-D
O José Régio tem excelentes textos, para além da poesia. Gostei deste particularmente, talvez por causa de uma fina ironia que pressinto, mais do que tenho a certeza.
ResponderEliminarObrigado pela visita, pcp e Luísa.
PS: o Eça, sempre o Eça...Não há como ele.
O Régio é um dos meus heróis. E é como diz, ele está a ser irónico. Foi a «presença» que começou a falar sobre Proust e Gide e Dostoievski e muitos outros.
ResponderEliminarFina ironia, sem dúvida. De princípio a fim.
ResponderEliminarfq
Que curioso! Não gostei nada do conteúdo do texto. Incomodou-me. É irónico, mas um irónico que incomoda. Agora, está muito bem observado e muito bem escrito. Mas incomoda. Somos todos diferentes, de facto. pcp
ResponderEliminarAh, como ansiava ouvir isto. Bem aventurados os que escrevem e nos aliviam o cansaço.
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