O calendário religioso avançava a um ritmo certo e previsível, como o alinhamento dos astros, os eclipses e as marés, ou a inevitabilidade dos impostos e da morte, estes dois últimos acontecimentos constituindo, ao que dizem, a única certeza da vida. Tal como numa célebre viagem de comboio entre a velha Sevilha e Guadalquivir, o Bem e o Mal, Deus e Satanás disputavam as almas com argumentos fortes: o céu, o prazer, o momento presente, o futuro, a construção, a facilidade, o imediato. E a contabilidade era uma guerra feita dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, sendo que o resultado final só se saberia no fim dos tempos, no apocalipse da vida, no estertor da existência.
O Rúben continuava a aparecer, a disponibilizar-se, a colaborar, a ouvir, a opinar, a olhar, a sorrir, a comover-se, a discordar. Entrava-se na Igreja, fosse em que dia ou hora fosse, e olhava-se à volta para descortinar onde andaria o Rúben, o que estaria a fazer, o que pensaria disto ou daquilo. E o homem da gaforina loira atirada para trás surgia do nada, de uma penumbra, de uma discreção. E cumprimentava, sorria, ajudava, olhava à volta de forma perscrutadora.
Um dia o Rúben desapareceu.
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Ok. A história fica por aqui. Porquê?, perguntarão os meus leitores mais fiéis, aqueles que aqui vêm semanalmente para deixar uma palavra simpática ou um olhar curioso. Por uma razão muito simples: não faço a mais leve ideia de como a acabar. Já quando a comecei, tarde e a más horas, não tinha um fim suficientemente interessante para lhe apor nos últimos parágrafos. Criei o subterfúgio do continua na próxima semana na ilusão de mais um tempinho, uma folga, um adiar da execução; na expectativa vã, talvez, de um golpe de asa com o qual me cruzasse nas minhas rotinas diárias. O facto é que nada surgiu. Nada de nada de nada. Ideias vagas, fins previsíveis, desenlaces sem brilho. Optei por esta confissão…
Alimentar uma coluna semanal com uma história ficcionada minimamente interessante tem sido obra. Herdei, do MTS, a 2ªfeira neste Adeus, até ao meu regresso… Também ele terá fechado o Lanterna Vermelha (depois de algumas dezenas de episódios) pelos mesmos motivos: falta de imaginação, o terror do dia fixo, a angústia do prazo a cumprir, o enjoo pontual de um teclado que é, oito horas por dia, uma ferramenta de trabalho.
Lamento desiludir os meus queridos e fiéis leitores. Eu, cronista, me confesso, poderia ser o tema deste post. Mas ele há dias, sabem? Talvez me surja uma ideia num repente; talvez a minha imaginação continue um deserto a perder de vista, talvez algum visitante tire um coelho da cartola e mo presenteie num repente generoso. Para já é isto... Ainda hesitei na continuação da novela O Consultor, escrevendo frases interessantes e que me entretinham, envolviam o freguês do blogue numa trama com final misterioso. O facto é que o Rúben estava condenado, porque tudo o que me ocorria tinha o triste odor do lugar-comum ou do déjá vu...
Olho para o MTS, para o JdB, para outros que sei terem sentido, aqui e ali, o mesmo cansaço criativo e só me ocorre uma frase:
Conheço-os bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.
JdB
JdB,
ResponderEliminarMais uma vez brilhante, desmanchei--me a rir.
Nem os palpites da semana passada lhe deram inspiração?
Por mim está "desculpado" desta falta de inspiração, pois é tão brilhante a escrever, que só queremos é que se inspire....
E este Domingo também se esqueceu, de escrever um comentário, na sua condição de Católico......
Até para a semana.....
Meu caro João, ora finalmente reconheço o meu bairro. Em todas as ruas, vielas, esquinas, portas, vizinhança… e nos becos, sobretudo nos becos. Gostei muito desta história simples do Rúben, por ele, pela sua «não-história» (como agora se diz), e pelos desabafos que lhe provocou.
ResponderEliminarP.S.: Também sinto, de vez em quando, o mesmo peso da obrigatoriedade «diária», no meu blogue e na «Porta» de que somos sócios. E a obrigatoriedade é um poderosíssimo inimigo da imaginação, que é rebelde e caprichosa por natureza. Por isso, neste momento, entrei no ensaio delirante de contínuas «revoluções». Ajuda e dá um certo gozo... Mas queira Deus fazer-me reencontrar alguma calma, brevemente. ;-D
Não se queixem (Luísa e JB), please, que quase é pecado: falta de imaginação não é, definitivamente, problema que vos atormente.
ResponderEliminarDixit!
(risos abafados)
Cris, Luísa, Fugidia: obrigado pela vossa visita a este bairro que se transformou num beco, O meu problema, confesso, não foi continuar a história. Poderia ter escrito um livro à volta do Rúben, mas os blogues não são para isso. O meu problema foi acabar. Estou com um problema, definitivamente, em acabar. E não fosse estar a repetir-me diria que o meu problema...
ResponderEliminarObrigado pela vossa compaixão pelo meu problema.
lol
ResponderEliminar:-)
João, esse é outro problema. Ou é, diria, um «não-problema»... Porque o que é preciso é continuar! :-)))
ResponderEliminarAcho uma pena não saber o que aconteceu ao Ruben. Mas estou como o Cris: lê-lo é já em si um prazer. Por isso, com desfecho ou sem ele, é sempre bom lê-lo. pcp
ResponderEliminarQuerido João,
ResponderEliminarÓptimo final! Deixar tudo em aberto é um voto de confiança no seu leitor. Pela parte que me toca, obrigada! Gostei de imaginar o meu fim e os que você terá engendrado. Bem divertido este desafio! Não veja como um vazio interior mas como uma oportunidade para outros voos.
Beijinhos