António Maria passava férias no Mónaco, hóspede frequente e requisitado de amigos ricos, para quem a palavra tristeza (como outras) tinha uma conotação muito própria, porque algumas pessoas usam as palavras dando-lhes sentidos específicos:
Estou triste, sabes? O Dow Jones fechou em queda e o Euronext não está a ajudar. Não achas uma tristeza?
Mas a tristeza bolsista era secundarizada pelos barcos, manobrados por mãos hábeis que aproveitavam o vento brando e a rotina mansa das marés, pelas tripulações vastas, almoços surpresa, camas abertas, gin and tonic ao fim da tarde, roupas bonitas e corpos bem tratados.
Em Portugal era conhecido em S. Carlos, onde era frequentador assíduo, assim como na Gulbenkian, nos leilões de arte, nos melhores restaurantes, nas festas mais deslumbrantes, nas famílias mais finas, nas revistas mais cor-de-rosa, nos casamentos mais luxuosos.
Tinha uma casa com uma vista deslumbrante sobre o Tejo, cuja decoração tinha sido facilitada por uma imensidão de quadros herdados e mobílias compradas, tapeçarias adquiridas após negociações criteriosas onde a dureza e a educação caracterizavam por igual o seu estilo.
Dizia, quem tinha passado pela sua cama de solteirão inveterado, que o sexo era magnífico. Atento aos ritmos de quem estava consigo, era virtuoso, criativo, ágil, aberto a novas experiências, demorado quando necessário, rápido quando exigido. Acendia velas, punha uma música suave e que se ouvia o bastante para não incomodar, e a noite acabava com o raiar do sol, com um pequeno-almoço de hotel de luxo e uma olhar burguês sobre os cacilheiros.
Porque o destino nos faz trilhar caminhos que se suporiam vedados ao estilo de vida que cada um escolhe, António Maria veio a apaixonar-se. Não por uma baronesa, mas pela Adélia, uma estudante de Engenharia do Ambiente e monitora do curso de boleros que o gestor decidira frequentar, para satisfazer o capricho de uma advogada, rapariga da baixa nobreza do Liechtenstein, por quem se apaixonara ao assistir ao Anel dos Nibelungos. Adélia tinha uns olhos escuros, um corpo esquivo e um nariz ligeiramente levantado. O artista cantava
Reloj deten tu camino
Porque me vida se apaga
Ella es la estrela
Que alumbra mi ser
Yo sin su amor no soy nada
e Adélia encostava-se, colava-se num requebro permanente, e o aluno sentia o peitinho dela a estremecer por baixo de um vestido de lycra que revelava formas escaldantes. Acabou por levar a dançarina a sua casa. A professora fascinou-se com as velas, os quadros, as tapeçarias, a temperatura ambiente, a cozinha, a organização dos armários, a vista sobre a outra banda onde vivia desde que nascera.
Sabe, doutor António
diria ela, estirada numa cama com duzentos anos, revelando uma nudez juvenil, firme, sem pudores nem receios. E ele, o gestor herdado que desenvolvera a fortuna e semeara contactos nos vários cantos do mundo, beijava-a ao de leve pelo corpo todo, como quem descobre, reconhece, regressa e descansa.
Diz, Adelita
Aprecio esta luxúria em que vive.
Luxúria? Eu acho que é luxo, não é luxúria...
E não é a mesma coisa? Olha, achei que era... A sério que não é?
JdB
Que espectáculo! Que belas descrições! E estes finais, meio desconcertantes, a voltarem a nossa atenção para os pecados capitais ... brilliant! pcp
ResponderEliminarContinua inspirado, parabéns! Gosto de o ler, tem uma escrita muito saborosa.
ResponderEliminarBeijinhos
Que bom adjectivo, "saboroso". É isso mesmo, o JdB escreve "saborosamente". pcp
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarJoão, desconfiando de que a origem etimológica é a mesma, fui ao dicionário, só para verificar se a Adelita não estaria, na sua pretensa ignorância, a tirar conclusões não completamente desacertadas. E não é que este dicionário «on-line» que aqui tenho me diz que «luxo» pode significar «viço», simplesmente, e «luxúria», «viço nas plantas»? Que o António supunha, ingenuamente, que a rapariga se referisse ao «viço» (simplesmente) da sua viçosa habitação já nós percebemos. Mas a Adélia não quereria, de facto, ser um pouco mais «abrangente» e louvar também, enviesadamente, o «viço» de uma muito específica «planta»? ;-)))))
ResponderEliminarCá para mim, João, terá de acrescentar às suas sete magníficas interpretações dos pecados mortais, uma oitava sobre um pecado «mortal» essencialmente feminino, aqui expressivamente ilustrado na SONSICE da Adélia…
(Meditação de última hora: a não ser que a Sonsice não seja mais, afinal, do que uma versão feminina, recatada, fingida, astuciosa, da genérica Luxúria).
Não me parece que a Adélia, embora estudante do Ambiente, no entanto professora de boleros, soubesse mais que confundir luxo com luxúria.
ResponderEliminarNão me parece que a Adélia, embora estudante do Ambiente, no entanto professora de boleros, soubesse mais que confundir luxo com luxúria. SdB(I)
ResponderEliminarPCP, Arit Netoj, Luísa, SdB (I): Obrigado pela visita que muito honra o editor e dono deste estabelecimento. Ao contrário de quem tem dicionários liberais que confundem as mentes puras, eu consulto os dicionários eclesiais - os que fazem doutrina. Talvez a Adelita tivesse o "viço" dos boleros, como há quem tenha o viço do cigarro, do jogo, do álcool ou do Facebook. Isto dos significados tem que se lhe diga... Ou talvez fosse, apenas, uma sonsa luxuriante...
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