Foi hoje, mas há nove anos, na processão das velas em Fátima. Aos meus ombros ia uma criança que não voltaria lá, porque o mundo pode ser traiçoeiro. Talvez por isso, também, goste de lá voltar sempre que posso: para sentir nos meus ombros a criança que não pôde voltar.
Olho para dentro de mim e quero acreditar que há sempre alguma coisa que muda neste dia, que se modifica para melhor. Talvez dure pouco e daí a necessidade do regresso.
Nostalgicamente, fica aqui algo que escrevi a propósito desse dia de hoje, mas há nove anos. É como se eu me separasse de mim próprio e escrevesse sobre o eu que fui naquela noite.
Perceberão os que me conhecem, imaginarão os que não sabem da minha história.
JdB
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A quinze metros de mim, não mais, um grupo de peregrinos, tão igual e tão diferente de tantos outros, chamou a minha atenção. Eram pessoas relativamente novas, dos seus quarenta e poucos anos, com crianças de várias idades. Dei por mim a fixar a vista num pai que levava uma filha aos ombros. Porquê, não faço ideia. Não havia nada naquele quadro que merecesse uma atenção especial ou mais demorada. Um olhar farol sobre o recinto mostraria com certeza inúmeros pais com filhos ao colo, aos ombros, às cavalitas. Porquê aquele, meu Deus? Enfim, mistérios da mente para os quais nem sempre temos explicação. Alguém que estava ao meu lado apercebeu-se da minha curiosidade e murmurou-me ao ouvido, entre duas Ave-Marias, a história daqueles personagens anónimos. Confesso que fiquei perturbada. Não só porque a minha cabeça, dos milhares e milhares de peregrinos que ali estavam, se fixou especificamente naqueles – que quem estava comigo conhecia -, mas também pela própria história. Na realidade, há acasos na vida de uma pessoa que, de tão extraordinários, mais vale ficaram sem um entendimento lógico que lhes tire o encanto.
O terço continuava, rezado em várias línguas, dez ou doze nacionalidades irmanadas na mesma fé que não olha a fronteiras nem a classes sociais. Não é preciso ser-se devoto de Fátima para saber que o fenómeno ultrapassou de longe os limites daquela pequena terra, se estendeu à Europa mais a Leste. Deixei-me ir embalada naquela ladainha, mistério após mistério, Ave-Maria, Pai-Nosso, um sem fim de orações com os dedos a percorrerem lentos as contas do Rosário. A minha mente era uma confusão de sentimentos, as ideias como bolas percorrendo anarquicamente uma mesa de bilhar. Era a angústia devido ao estado de saúde do Joaquim, o pensamento desesperado ‘faço tudo o que for preciso para o salvar’, lado a lado com uma imensa perturbação por não saber com exactidão o que ali estava a fazer, as dúvidas de fé a contribuírem para o desassossego do espírito.
Findo o terço começou a procissão da velas, um dos momentos altos da Fátima do 13 de Maio. O andor continuava o seu percurso pelo recinto e, ao som de cada refrão, os peregrinos sentiam seguramente o mundo inteiro mais iluminado, vela ao alto, corações ao alto, os olhos postos no andor e a alma no Céu. Entrei mais uma vez naquele ritual de fé, como se quisesse mostrar a Nossa Senhora que eu estava ali, que precisava dela, sem na realidade ter uma opinião muito definida do seu verdadeiro poder e da sua influência na minha vida. ‘Rogai por nós que recorremos a vós’.
A minha atenção dividia-se de uma maneira quase ostensiva entre o ponto onde se encontrava a imagem de Nossa Senhora e aquele quadro familiar que, indiferente ao meu olhar e à minha curiosidade, prosseguia a sua jornada de devoção. O pai mantinha a filha aos ombros, esquecendo possivelmente o esforço físico, subjugado por um peso muito mais difícil de suportar. Mesmo na escuridão da noite iluminada por uma miríade de velas, consegui olhar ambos nos olhos. Surpreendeu-me como lhes consegui ver – no mesmo instante - o sofrimento e a esperança, a angústia e a confiança. Uma mistura de sentimentos que eu admitia não conseguir vislumbrar em toda a sua dimensão faltando-me, claramente, a experiência da maternidade para sentir o que é o verdadeiro amor por um filho. Naquela imagem tão singela estava o esplendor e a miséria das nossas vidas, o princípio e o fim de tudo. ‘Ave, Ave, Ave Maria’, pai e filha elevavam os braços e imagino que ambos gostariam, na diferença do entendimento de cada um, que o andor se voltasse para eles, que Nossa Senhora lhes desse um sinal – ainda que imperceptível para todos os outros – que os tinha visto e que tomaria conta deles. Para sempre.
João, :-)
ResponderEliminarUm grande beijo, João. Directamente de Fátima, com os sinos a repicar, o Santo Padre a aterrar e o recinto todo engalanado para o receber. Toda esta festa é, metaforicamente, a festa que um dia teremos no Céu. Para melhor, evidentemente. Grande beijo. pcp
ResponderEliminarEnvio-lhe um comovido abraço, louvando-o por esse amor de pai, que transcende a materialidade.
ResponderEliminarE ainda bem que transcende -- digo-o com toda a sinceridade. Sou descrente, como sabe, porém acredito no Amor.
Sublime é o amor de quem ama assim :-)
ResponderEliminarMaf
Ame(n)!
ResponderEliminarHoje precisava de ler isto antes de me ir deitar.
Não conheço a história mas vou voltar para descobrir mais sobre si.
Uma Noite Feliz!
Teresa
Luísa: fica a retribuição e, acima de tudo, o agradecimento.
ResponderEliminarRAA: obrigado pelas suas palavras, sobretudo por realçar que acima da nossa crença está o amor. E obrigado pelos seus comentários cronologicamente cirúrgicos e sensíveis.
PCP: um beijo para si, nessa tarefa que a levou a Fátima, arranjando tempo para uma palavra simpática. E tem razão - o Céu é tudo isso, mais aquilo que todos quisermos.
MAF: tal como disse no seu comentário ao post da "Sumol": tudo muda quando temos a alegria da paternidade, mesmo que essa seja interrompida. é o tal amor de que fala.
Teresa: obrigado pela primeira visita - ou pelo menos pelo primeiro comentário. Volte sempre, se bem que sobre mim pouco haverá a descobrir...
Eu estive lá e, mais uma vez, ao longo de todos estes anos lembrei-me deste momento que na altura vivi. Recordo-o todos os anos, faz parte da minha peregrinação a Fátima.
ResponderEliminarBeijinhos