Uma das artistas portuguesas mais marcantes – a Joana Vasconcelos – tem perto de 40 obras expostas no CCB, integradas na Colecção Berardo e patentes ao público até 18 de Maio(1). O título da mostra identifica bem o estilo interpelador da Joana: «SEM REDE». Algumas das peças mais inspiradas (para mim) transbordam, literalmente, para o exterior, em especial a mega-escultura «Sr.Vinho»:
(2010) Garrafão de 5 m de altura, tecido no rendilhado de ferro forjado das
varandas pombalinas, que uma grua colocou no Jardim das Oliveiras.
Nas duas entradas do Museu, erguem-se dois castiçais gigantescos, «Néctar», numa estrutura metálica aerodinâmica, muito esguia, revestida de milhares de garrafas verdes. Daria um vidrão hiper decorativo! Junto à recepção, as ventoinhas coloridas «Wash and go» fazem as delícias das crianças e divertem os adultos, quando disparam em espiral. Este é dos méritos da artista, sempre incrivelmente comunicativa, através de instalações de tamanhos astronómicos, mas com uma ironia comedida, linhas sóbrias e harmoniosas, resultando em obras expressivas e coerentes, de fácil leitura e rápida sintonia. A boa disposição impregna a arte da JV, desafiando os cânones tradicionais ao transfigurar materiais paupérrimos da sociedade de consumo. No fundo, atrevendo-se a reciclar a banalidade e o kitsch, que o universo artístico costuma ignorar, olimpicamente!
Claro que nem todas as soluções ousadas da artista, nascida em Paris, no ano de 1971, terão alcançado o efeito de eloquência estética e irónica que marca a exposição, quando o populismo e o excesso de previsibilidade submergem o intervencionismo arrojado da JV. Digo isto, só para prevenir eventuais metros de arte menos felizes, nos corredores expositivos que vão de «O mundo a seus pés» (cliché) até ao carrocel ou mesmo à «Burka» (em cedência ao politicamente correcto), onde apenas ressalvaria o testemunho da Joana sobre a experiência criativa da instalação Fátima Shop (FS): «Tenho sempre de falar do FS. Até hoje me estou a perguntar: como é que aquele ciclomotor me levou a Fátima?… Foi uma viagem fantástica que fiz no dia 12 de Maio de 2003. Queria perceber o factor Fátima, perceber o que motivava as pessoas a fazer uma peregrinação...» (2 ver citação integral)
Vale a pena retomar os pontos fortes da artista, que superabundam no CCB, deixando para cada um explorar os alertas ecológicos e político-sociais presentes na mostra:
- Os 5 m de sapato «Cinderella», 2007, parecem saídos dos estúdios da Disney! A mensagem é revolucionária, porque a metamorfose de plebeias em princesas é um facto inegável e até consentido, com inúmeros exemplos entre as top models da actualidade. Agora, o trem de cozinha ganhar glamour e direito de entrada no salão de baile, convenhamos que é um feito inédito…
Recentemente leiloado pela Christie’s, em Londres, atingindo valores homéricos.
- Os lindíssimos «Corações Independentes» (2004-2006) – Dourado, Preto e Encarnado – tecidos numa trama translúcida de talheres plásticos, de quase 4 metros de altura, ondulando ao som do fado de Amália, conquistam-nos à primeira. Aliás, o dourado foi a obra de representação do país, no átrio do Conselho Europeu (2º Semestre de 2007), em Bruxelas. A ideia nasceu de uma encomenda para o restaurante Eleven, culminando na simbiose da portugalidade, onde a joalharia de filigrana e o fado se fundem em jóias extraordinárias, sob o signo da boa cozinha nacional:
Segundo a autora: «o Vermelho, do fado, do amor, dos sentimentos; Dourado, que representa
o ouro e a tradição portuguesa; e Preto, que simboliza a morte, a dor e o sofrimento»
- Numa alusão divertida e q.b. acutilante à moda das drogas – começando nas mais benignas, validadas pelas farmácias – Joana brinca com os paradoxos de uma sociedade de superabundância e de plena liberdade, que vive atordoada e lida mal com… nada menos que a própria realidade, preferindo, por vezes, intoxicar-se nos recursos escapistas que a química proporciona:
Sofá Aspirina, 1997- Blisters com comprimidos Aspirinas de 500 mg madeira e vidro.
Ao lado, estende-se a Cama Valium (1998)
Para explicar melhor a abordagem tão positiva da Joana, vale a pena referir uma peça suspensa na antecâmara da entrada, que só pela beleza lhe seria atribuível. Vista de perto, a carga negativa da esfera cintilante, com 18.000 balas cravadas em volta, dificilmente teria a sua assinatura! O título é auto-explicativo: «Death Star» (1993). E a autoria é de Robert Longo, numa crítica feroz contra a quantidade obscena de projécteis disparados nos EUA, apenas num ano!
Uma singularidade notável que se infere da arte da JV é o olhar curioso, ávido de descobrir e sintonizar, mais lúcido que crítico, mais empático que julgador. Empenhada na busca incessante de símbolos pátrios, qual coleccionadora de antiguidades, recria-os depois num cenário de modernidade, que lhes desperta uma vitalidade comunicativa, que julgávamos extinta. Do atelier da Joana, as velharias chegam-nos rejuvenescidas, como Belas Adormecidas. É também uma feliz surpresa o toque de afectividade omnipresente nas suas peças, surpreendendo-nos pela originalidade arrebatadora, sem resvalar para o efeito de placagem, puro e duro, cultivado por muitos artistas contemporâneos. Daí que o gigantismo das suas peças nunca intimide, antes inspire uma atmosfera divertida e aconchegante, até porque impera a transparência e a luminosidade, como em Lisboa.
E recorro a um poeta para explicar «Sem Rede», porque a poesia tem o condão de penetrar os segredos da realidade, sem ser intrusiva, esquivando-se às análises esquadrinhadas, que julgam esgotar o mistério da vida! De facto, num excerto do livro As Aventuras de João sem medo, logo com um título aplicável à Joana, dá-se o mote certo para esta exposição: «É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir»(3).
Haveria dezenas de peças giras para postar, mas convém manter algum suspense para quem venha a deambular SEM REDE, dispondo-se a mergulhar no património cultural português – que se abre ao mundo, como o Atlântico, no dizer da Joana – e de onde se sai refrescado, agradavelmente espantado de vibrar com um presente enriquecido de história!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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1 Sobre o horário e questões afins, consultar o site: http://museuberardo.pt/informacoes.html .
Nos Jardins do Museu da Cidade (ao Campo Grande), também estão expostas obras da Joana Vasconcelos.
2 Citação integral: «Tenho sempre de falar do Fátima Shop. Até hoje me estou a perguntar: como é que aquele ciclomotor me levou a Fátima? Nunca tive de pôr gasolina e percorri cento e tal quilómetros de Lisboa até lá. Foi uma viagem fantástica que fiz no dia 12 de Maio de 2003. Queria perceber o factor Fátima, perceber o que motivava as pessoas a fazer uma peregrinação. Foi uma viagem engraçada, com muitas peripécias. Ia sendo atropelada por um camião TIR e nunca me esqueci de que os primeiros peregrinos que encontrei eram croatas. É uma peça com uma estrutura menos clássica que as outras, já que é um vídeo que acompanha uma escultura, ou vice-versa, ou seja, uma instalação.»
3 Do poeta portuense, José Gomes Ferreira (1900-1985 ).
Oh MZ! Que texto com sumo e com tanta côr! Adorei. Até porque gosto muito da JV. Gosto da temática que escolhe, gosto da sobredimensão, gosto da jovialidade e irreverência que as peças emitem, gosto dum certo kitch, e do gosto pop (popular) que no caso dela tem muito de decorativo e "esteticamente" agradável e que o establishment intelectual/artístico de Portugal nada aprecia! Who cares? Bem melhor a JV do que ver um doido dum artista a filmar um pobre dum cão a morrer à fome. Esse homem devia ser preso. E por longos anos! Parabéns, MZ, inspiradora as ever! Bjs. pcp
ResponderEliminarobrigado MZ pelo aperitivo à exposição que ainda não vi. continue por favor a ser a nossa guia das expos de Lisboa.
ResponderEliminardeA
Obrigadíssimo tb pelos óptimos comentários, sempre muito animadores. MZ
ResponderEliminarÉ realmente um privilégio observar as artes plásticas pelo filtro do seu olhar, MZ. Obrigado, jp
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