Sabes, disse-lhe Sofia olhando para o sol que caía lentamente por detrás de Santa Sofia, estou convencidíssima de que o problema do homem moderno é o seu afastamento da Beleza. Deixamo-nos enredar em problemas, correrias, stress e acabamos por nos centrar no lado negro da vida, esquecendo-nos que somos, em grande parte, o que pensamos. Que, por sua vez, alimentamos através do que vemos, ouvimos, lemos, pelas pessoas de quem nos rodeamos ….. Pensar é, até certo ponto, ainda que não totalmente, uma escolha. E o cultivar uma atitude de esperança não é uma mera abstracção filosófica ou teológica...
Sofia calou-se e António não disse nada. Sabia que Sofia precisava que lhe dessem tempo. As ideias vinham-lhe do fundo e ficava insegura quando ouvia vozes discordantes à sua volta. Passaram-se longos minutos. O céu tinha-se tornado azul escuro e o fumo adocicado dos narguilés e o ar quente do Verão de Istambul convidavam à conversa cheia de espaços. Reparaste - continuou Sofia -, reparaste na beleza dos mosaicos bizantinos que acabámos de ver? Deste conta da delicadeza e das tonalidades dos frescos de San Salvatore in Chora? Lembras-te do que o nosso guia disse, que para além do treino técnico, os artistas da Antiguidade passavam por um longo período de preparação espiritual antes de iniciarem o seu trabalho? E isso VÊ-SE!, exclamou empolgada. E reparaste como Istambul está cheia de pequenos terraços, privados e públicos, e de esplanadas com vistas de sonho que convidam ao descanso e à contemplação? Sofia virou-se para António e este viu os seus olhos brilharem por detrás de uma ténue cortina de fumo. A Beleza liberta, disse serenamente.
O empregado do café aproximou-se e mudou as brasas dos narguilés para que o cachimbo de água fumasse mais facilmente. Sofia enroscou-se ainda mais no sofá côr de camelo, inalou fortemente e deixou que uma enorme nuvem de fumo a envolvesse mais uma vez.
As palavras voltaram a ficar suspensas.
Andamos todos cegos, prosseguiu, continuando a olhar para o horizonte a encher-se de luzes. Bem dizem os místicos e aqueles que sabem pensar: o Homem anda cego. Ou então sofre duma cegueira congénita, primordial! Talvez seja mesmo por aí... Tem tudo à sua disposição, tem toda a beleza do mundo à sua disposição e não consegue deixar de se centrar nos problemas, na melancolia, na tristeza, na doença, na chuvinha irritante, na promoção que não teve. Não foi para isto que fomos criados, não faz sentido viver assim. Para mim, e não sou original no que digo, como bem sabes, o segredo da vida reside na simplicidade e na contemplação da beleza.
Li há pouco tempo um livro que me marcou bastante. O White Tiger, do Aravind Adiga. Conheces? É um retrato cru, uma sátira mordaz ao status quo da Índia actual. A Índia retratada é corrupta, suja, cheia de fraquezas e ânsias por dinheiro, presa numa eterna roda de serviço, no sentido menos nobre da palavra: todos servem alguém e ninguém se liberta dessa roda viciada. Os que nascem para varrer o chão continuam a varrer o chão; milhares de jovens aceitam ainda casamentos arranjados pelas respectivas famílias; a mentalidade feudalista no campo profundo mantém-se quase inalterável; o respeito pelos mais velhos e pelos patrões expressa-se ainda numa obediência incontestada, que dá origem a abusos desumanos. Concluindo: desta roda infernal - uma analogia ao círculo da reincarnação, o Samsara - só se salvam os que têm dinheiro ... que normalmente precisam de transgredir para o obter. É um livro brutal, ainda que temperado por um humor (aparentemente) simples mas muito sarcástico, escrito por um indiano cosmopolita e terrivelmente desapaixonado.
Mas há neste livro uma citação extraordinária de um místico muçulmano, Iqbal, a quem o protagonista, homem miserável e astuto, venera. E que resume o que te disse há pouco:
Não achas esta frase um espanto, António?
(ao jp, com muita amizade e admiração)
PS: e para quem quiser conhecer o poeta, político, filósofo em questão:
http://en.wikipedia.org/wiki/Muhammad_Iqbal
Ah ía-me esquecendo, o Deixa-me Rir é, sobretudo, música ... tenho de escolher uma canção... Hoje optei por uma música ultra romântica e profundamente triste. Mas tão suave ...
pcp
Gostei de ler, pcp. Revi-me em Istambul, onde estive ha ano e meio, como também me revi nalgumas partes do texto, sobretudo quando menciona que a Beleza liberta. Outras coisas há que nos libertam igualmente, mas talvez tenhamos a tendência de nos agarrarmos ao que oprime - o tal lado negro da vida - porque aí somos iguais aos outros. E o desejo de diferença pode ser uma faca de dois gumes...
ResponderEliminarObrigado pela "quinzenalidade" inspiradora.
Hi pcp, love PC's version of this Kris Kristofferson song. Even better is his version of Don McLean's And I Love You So. PO
ResponderEliminarSo sweet of you, dono do blogue. Adorei que tivesse escrito o que escreveu. I really appreciated it. As for you, Philip, so glad you liked my song. I suppose not everybody will like it, so it's nice to feel "recognized". I find it wonderful, though very sad. It feels like velvet (a bit the same impression I had when I heard Tony Bennett sing that song that I posted a few weeks ago). Big beijinho to both. pcp
ResponderEliminaradorei a prosa, pcp. De facto o homem anda cego, e anda cego porque trocou o ângulo de visão. Em vez de olhar a 'belezura' que existe à sua volta, o homem do hoje olha, primordialmente, para o seu umbigo (nem todos/as claro :-). Inverteu-se o sentido da visão. Não é que eu tenha alguma coisa contra o "olhar para dentro", não! Bem pelo contrário. Mas quando esse olhar para dentro, em lugar de ser um meio para se chegar à mudança,à melhoria do eu, se torna um fim em si mesmo, então o homem cega, sim.
ResponderEliminarGosto de a ler, pcp. Bj
Maf
porque eu acredito na reciprocidade, aqui fica uma 'prenda minha' (como diria o grande caetano), a propósito de beleza.
ResponderEliminarhttp://www.youtube.com/watch?v=Lvqoqjwfv-c
flores,
gi.
Obrigada pcp. Gostei mesmo:)
ResponderEliminarGiríssimo, pcp, este regresso a Istambul, envolto em narguilé... Mto giro! Concordo 100% com a Beleza que nos desintoxica e emancipa, por dentro e por fora!
ResponderEliminarbjs,
MZ
Maf, também gosto muito de a ler a si. Gi, lindíssimo, já conhecia. Mas é sempre bom re-ouvir. Maria Lemos, seja bem aparecida! MZ, minha companheira de viagem... a todos muito obrigada. E um bom fim-de-semana. pcp
ResponderEliminarI Agradecido, desvanecido e embevecido, penhoradamente, profundamente e duplamente, pela subida honra e o ansiado prazer da sua prosa
ResponderEliminarII Mas mais do que tudo, estou intensamente estimulado pelas suas reflexões.
Ao lê-las, dei-me conta que sempre olhei a Beleza como uma moldura da realidade, um predicado, um atributo de, algo acessório a um quid, como um catalizador, algo em que se reparava, mas não se consumia. Podia discorrer sobre Beleza como sobre uma coisa em si, concede-se, mas mais por forçada analogia de quem não sabe forjar novas ferramentes que por reconhecê-la como entidade.
Mas o que diz faz muito sentido.
É claro que já experimentei não apenas o deleite, mas o bálsamo, da Beleza. Só nunca tinha pensado no seu potencial modalizador e não apenas terapeutico.
Pode-se fundar toda uma cosmognia a partir das suas observações.
É curioso que já no sec XVIII, vários filófos postularam o Mundo exterior como um discurso de Deus aos homens, mas usaram-no apenas para ultrapassar o debate com os que negam ao conhecimento humano possibilidade de aceder à coisa em-si. Era um argumento epistemológico, não um ponto de partida.
Tenho absolutamente de falar proximamente disto consigo.
Agradecido, desvanecido e embevecido, penhoradamente, profundamente e duplamente, *
jp
* Qual é o espanto, duplamente não quer dizer duas vezes?
Fico contente que o meu modesto texto tenha suscitado profundas reflexões da sua parte, jp! E ainda a propósito de Beleza, para a qual existem tantas definições quanto filosófos, artistas, teológos ou pensadores, aqui fica uma da Vieira da Silva (in Fulgor da Luz), a propósito da sua preferência por Haydn: "Sabe, eu acho que a beleza, a harmonia, são sempre mais fortes do que a desgraça, a violência, o terror, a vilania. Uma obra bela - estou a pensar precisamente na música de Haydn ou a Flauta, do Mozart, por exemplo - deixa pressupor ou antever que o seu autor conhece toda a dor, a fealdade, o drama que fazem parte da vida, torna-nos sensíveis ao seu peso e à sua presença, mas sem os colocar voluntariamente em primeiro plano. Ele procura exprimir as forças do amor e contudo a sua obra tem o peso de toda a tragédia humana. É essa a riqueza dos génios" - bjs. pcp
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