A extrema beleza das quatro grandes Tapeçarias de Pastrana constitui a melhor homenagem aos avanços estratégicos de D.Afonso V no Magrebe, de merecido cognome O Africano. Foi essa a intenção da encomenda à oficina flamenga de Tournai. Tratava-se de fixar para a posteridade a memorável conquista da cidade portuária de Arzila, estrategicamente situada.
É assombroso o rei ter investido, em vida, na glorificação do seu reinado por meios visuais tão imponentes, sem se contentar com as crónicas encomendadas ou os retratos imortalizados em telas. E isso vale o título da exposição patente no MNAA (1), até 12 de Setembro: «A Invenção da Glória», em que o termo inventar é sinónimo de «descobrir», como sublinha o director do Museu.
Datadas de 1470-71, as magníficas Tapeçarias flamengas terão ficado no país por um curto período, sabendo-se que em 1532 já estavam em posse castelhana, no palácio do duque do Infantado (2), que mais tarde (séc. XVI) as cedeu à Colegiada de Pastrana (Espanha), de onde lhes vem a actual denominação. Assim, é um privilégio único poder vê-las em Portugal (até 12.Set.), junto aos Painéis de S.Vicente (3), beneficiando do diálogo com uma obra igualmente mítica, da mesma época e do mesmo universo iconográfico.
Aquele modo artístico de glorificar a História, em vida, inscreve-se mais na tradição anglo-saxónica que na ibérica, empenhando-se em comemorar e mitificar o passado recente. Nesse sentido, as Tapeçarias constituem um feito notável e raro, em Portugal, que talvez se explique pela influência da mãe da Ínclita Geração, de origem inglesa.
O filme em cartaz, de Ridley Scott, «Robin Hood» lembrou-me esse mérito dos ingleses, que desde cedo souberam inscrever no ideário europeu o mito dos Cavaleiros da Távola Redonda e do lendário Rei Artur, contagiando todo o universo cavaleiresco medievo, além-fronteiras. É disso prova, o facto de o ídolo de D.Nuno Álvares Pereira ser o Cavaleiro Galaaz, o escolhido para empunhar a espada sagrada – Excalibur. De facto, é difícil avançar no presente e traçar lucidamente o futuro sem honrar a história, estudando e avivando o passado.
Precisamente com o intuito de fixar os grandes feitos, no espantoso conjunto dos quatro panos de armar de Pastrana exaltam-se 4 momentos sequenciais, num crescendo épico, iniciado pela trilogia da conquista:
1ª tapeçaria – Desembarque – impõe-se a visão da enseada coberta pelas naus com os estandartes das armas lusas, o rei a liderar a armada que se dirige aos torreões (na face direita) da cidade-fortaleza, fortemente murada, além de protegida por um mar revolto;
2ª tapeçaria – Cerco – destaca-se a vedação crivada dos escudos portugueses, num duplo efeito de remate colorido do painel; no interior, um numeroso exército agrupa-se à esquerda em volta do Príncipe e à direita em volta do Rei;
3ª tapeçaria – Assalto – uma amálgama de figuras, pontuadas da cor das bandeiras e armaduras dos cavaleiros portugueses, é animada por músicos a alentar a difícil tomada; o ambiente de luta encarniçada, entre a ferocidade da ofensiva e o desespero dos sitiados, joga a favor dos atacantes, exibindo já o indisfarçável garbo dos vencedores;
4ª tapeçaria – Tomada – respira-se uma atmosfera pacificada, reordenada, onde avança pela direita o exército triunfante e se afasta pela esquerda a população local, dominada por mulheres e crianças em busca de novas paragens.
Em 1457-58, o cavaleiro alemão, Georg von Ehingen, pintou o retrato de D.Afonso V com uma inscrição muito elogiosa: «O Rei era um príncipe bonito e bem formado e o mais cristão, mais bélico e mais justo que alguma vez conheci.» Enfermando dos habituais paradoxos humanos, o rei Conquistador – imbuído dos ideais cruzadísticos da época e da mística muito própria da Casa de Avis – teve um final pouco glorioso a ensombrar-lhe a memória (2 - cf ref. Batalha de Toro). Valeu-lhe a agudeza política magistral do Delfim, de cognome O Príncipe Perfeito, devolvendo a dignidade à dinastia inventada (na acepção de «forjada») pelo Santo Condestável (entre outros), ao assegurar-nos uma nova linhagem, a salvo de Castela e inaugurada com o sangue do aliado inglês, em D.Filipa de Lencastre.
Volto à película de Ridley Scott por ser um exemplo muito feliz da capacidade anglo-saxónica de revisitar a história, misturando, habilmente, lendas (séc.XII) e factos, numa teia de forte cariz patriótico, sem patrioteirismos, tal a naturalidade com que lhes sai… Nesta versão de Robin Hood, reinventa-se o defensor do povo a empunhar os valores democráticos da Magna Carta, devidamente alinhado com a nobreza, que desde cedo teria querido combater ao lado da população, propondo-se balizar os poderes régios. São também gloriosas as inúmeras batalhas ali travadas, de uma bravura e combatividade intrépidas, à medida de Ricardo Coração de Leão. A excepção é o novo rei, só por infeliz coincidência irmão do primeiro. Não por acaso, o adversário francês investe sobretudo na política de bastidores, aliciando mercenários, no intervalo dos infindáveis repastos de ostras frescas! Nos antípodas estão os ingleses, onde até um senhor feudal indefeso, cego e entorpecido pela provecta idade, se bate até ao limite das suas parcas forças. É um facto que perdeu a vida (perdê-la-ia, cedo ou tarde), mas não a honra. Fica bem patente a dificuldade de um traidor singrar no seio de um povo frontal e de palavra, que exige liderar o seu destino. Nunca se esquiva à luta, muito ciente dos seus direitos de cidadania. O lema para terçar armas pela liberdade teria sido a bandeira do pai daquele Robin dos Bosques, igualmente valoroso: «Rise and rise again, until lambs become lions». A novidade deste herói popular é o orgulho nacionalista, a aliar ricos e pobres numa frente única para instaurar a democracia. Os inimigos são: o estrangeiro beligerante, o traidor subornável e o rei autoritário e fraco.
Retomando as façanhas celebradas nas Tapeçarias – que não vão longe da exaltação nacional filmada por R.Scott – faço votos para que a vontade corajosa e empreendedora da armada de outros tempos venha a encontrar eco no Portugal de hoje. Não em demonstrações bélicas. Mas na vontade firme e discernida de devolver ânimo a um povo que, conjuntamente, se disponha a reafirmar e defender a sua identidade. Uma identidade muito antiga e imbuída de uma das histórias mais épicas e originais (pelos melhores motivos) que a humanidade conhece. Revê-la e narrá-la já é um bom arranque, como as Tapeçarias parecem sugerir-nos.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) MNAA - Museu Nacional de Arte Antiga: http://www.mnarteantiga-ipmuseus.pt/pt-PT/destaques/PrintVersionContentDetail.aspx?id=400
Morada: R.das Janelas Verdes, Lisboa. Telefone: +351 21 391 2800.
E-Mail: mnarteantiga@ipmuseus.pt
Propriedade: desde 1664, as Tapeçarias são pertença da Colegiada de Nossa Senhora da
Assunção (Pastrana), por doação dos duques do Infantado.
(2) Título nobiliárquico conferido pelos Reis Católicos a Diego de Mendoza, em 1475.
Note-se que continua por explicar o aparecimento das tapeçarias no Palácio do duque, em Gaudalajara, conforme assinala o historiador e Director do MNAA, António Filipe Pimentel.
Uma das teses mais correntes (citando doc.s do séc. XVII) considera que terão sido oferta de D.Afonso V ao nobre mais poderoso de Castela – o marquês de Santilhana, fundador da Casa do Infantado – para o persuadir a apoiar as pretensões do rei português à coroa castelhana. Simplesmente, as lutas diplomáticas e bélicas entre Portugal e Castela culminaram da pior forma, na batalha de Toro (1476), de onde Isabel «A Católica» saiu vitoriosa, depois de o futuro duque do Infantado se declarar seu partidário.
Outra das teses defende que terão sido subtraídas à coroa portuguesa, muito provavelmente na batalha de Toro, onde estariam expostas nas barracas de Campanha de D.Afonso V.
(3) Atribuídos a Nuno Gonçalves, só no final do séc. XIX foram redescobertos, faltando suporte documental fidedigno para se poder identificar as personalidades ali figuradas e descodificar toda a simbologia encerrada no conjunto dos seis retábulos.
Há por aí alguém que tenha contactos num jornal ou revista para que esta senhora possa passar a escrever regularmente para uma coluna de opinião/informação? É que me parece que é isto mesmo que ela merece!! Pela forma como escreve, pelo "trabalho de casa", pela análise e pensamento... acho que fazem falta pessoas assim na imprensa portuguesa. Pessoas com opiniões e que sabem pensar. E que não sejam sempre os mesmos nomes! O nosso país parece aquele jogo das cadeiras, em que os intervenientes são sempre os mesmos, as cadeiras é que vão sendo retiradas, mas ficam as mesmas pessoas ... Boa, MZ! pcp
ResponderEliminarQue querida, pcp. És mesmo engraçada. Nem tenho palavras. Bj gd, MZ
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