Escada acima, escada abaixo. Tapetes levantados, almofadas do sofá incomodadas, cadeiras arredadas do seu lugar de repouso habitual, esquinas de salas esquecidas que tiveram direito a ser olhadas segunda e terceira vez. Nada dentro de casa escapou a esta busca impiedosa pelo tostão perdido.
Os cortinados foram mexidos, remexidos e abanados que, estando sempre tão fechados sobre si próprios, são o esconderijo perfeito para um tostão transviado. Tantas dobras e tanto pano oculto só podem servir para esconder o que não se quer mostrar.
As molduras foram rodadas ou deitadas, quem sabe se por trás dos sorrisos das fotografias não se esconde alguém que gosta de ficar com o que não é seu. Houve mesmo algumas que, por distracção ou vingança, quem sabe?, foram deixadas voltadas para uma parede vazia, ou ainda pior, voltadas para fotografias de pessoas de quem não gostam.
Nem mesmo o piano, avô de todos os móveis da casa, foi poupado a esta violação de privacidade. Espreitaram para dentro dele, sem pedir licença, sem bater no tampo para anunciar que iam entrar. Levantaram e afastaram as cordas, já frouxas e moles devido ao abandono e esquecimento a que foram votadas, como os velhos que vão contando o tempo que têm, com dedos que já não mexem e articulações que rangem.
Em lado nenhum se encontrou a moeda. Evaporou-se. Desapareceu. Fugiu sem deixar morada nova. Já não havia pedaço de chão que não tivesse sido esquadrinhado. A casa tinha sido toda passada a pente fino.
Amanhã viria o leiteiro fazer contas, e como reagiria quando lhe fosse dito, Olhe, eu até tinha o dinheiro que lhe devo, mas o tostão decidiu fazer pouco de mim e saiu de casa sem me dizer para onde ia. Como seria paga a manteiga para dar sabor às torradas? O pão para a torradeira? A electricidade que dá vida, não só à torradeira, mas também ao resto da casa? E se nós sem comida corremos o risco duma fraqueza, o que acontecerá a uma casa sem electricidade que, vendo bem, é a sua fonte de alimentação?
Bem diz o Evangelho que devemos ir sempre em busca da dracma perdida, mas, nessa parábola, a dona da moeda desaparecida tinha outras nove guardadas em lugar seguro. Essas não iam a lado nenhum, estavam fechadas a sete chaves dentro de um cofrezinho de madeira que, por sua vez, estava guardado dentro de um baú, esse fechado não a sete mas a nove chaves. Uma por cada dracma. Com tanta tranca não há, realmente, o perigo de desaparecimento de mais dinheiro.
Mas neste caso a moeda era exemplar único. Não havia mais nove dentro de um cofrezinho, dentro de um baú. Por isso, esta busca tinha mais de necessidade que de misericórdia.
Mas, seja quais forem as razões por trás da busca, parece que o dinheiro levou a melhor. Partiu para parte incerta, lançou-se ao mundo, foi descobrir novos porta-moedas. Ou então, talvez esteja só bem escondido dentro de casa, amuado num esconderijo secreto, a descansar de todas as transacções a que tem sido sujeito, e toda esta busca furiosa pelo tostão perdido seja um pouco exagerada.
SdB (III)
Bom dia SdB III.
ResponderEliminarAdoro a forma como dá vida e alma ás coisas, resguardando-se da fúria (diria mais raiva seguida de desalento)que ouvimos na peça de Beethoven.
Volte sempre que me encanta.
Que ideia tão gira partir duma obra do Beethoven (penso que assim foi!) e contar uma história tão simples e tão viva. Consegue visualizar-se a sala onde tudo se passou... Obrigada. pcp
ResponderEliminarQue graça ter partido de uma obra de Beethoven para fazer uma descrição tão peculiar com esta. Grande creatividade. Gosto especialmente da forma como descreve o piano. Obrigada.
ResponderEliminarAna LA, pcp e Anónima,
ResponderEliminarObrigado pelos comentários, e espero que nos voltemos a ver daqui a duas semanas.
Obrigado,
SdB (III)