No momento clímax da película há duas novas personagens presentes num jantar histórico e derradeiro, no mosteiro de Nossa Senhora do Atlas, onde se cruzam todas as cumplicidades. Ali convergem os esforços de sobrevivência dos religiosos franceses. Ali se corrobora, pela amizade profunda que dispensa palavras, a decisão individual mas comum a todos, partindo de pontos tão distintos quanto as suas diferentíssimas personalidades. A perseguição fora-se adensando! Vivia-se, literalmente, ao fio da espada. De uma espada sedenta de sangue. As sortes pareciam estar lançadas…
Mas, estranhamente, não há nada de negativo nem de estéril na forma como vivem o cerco que se vai cerrando à sua volta. Um cerco a que não se esquivam por máxima generosidade pessoal ao pedido da pequena aldeia muçulmana, que se sentia protegida pela fé bondosa que irradiava do mosteiro. Sim, não há a mais leve apologia do martírio ou alguma vaga decepção com a vida, género capitulação passiva. Até nisso, é de uma grandeza incrivelmente saudável!
O monge-médico com os seus amigos doentes
A segunda personagem, à Victor Hugo, é a célebre ária do Lago dos Cisnes, prenunciadora do final de um conto que Tchaikovsky escrevera e compusera para a sua irmã mais nova, inicialmente com happy-end. Só depois da morte do compositor, a peça musical –ainda pouco reconhecida pelo público– adquiriu um desfecho negativo, tornando-se de imediato um êxito de bilheteira. E foi na versão negra que entrou para a história das grandes composições orquestrais para ballet, somando duas expressões artísticas onde os russos são magistrais.
Curiosamente, a metamorfose do Lago dos Cisne – sonhada para ser uma narrativa infantil benigna e q.b. aventurosa, onde tudo deslizaria em sonoridades diáfanas– de algum modo, parece ter-se tornado a própria metáfora da vida dos monges radicados no Magrebe profundo. À obra musical houvera a intenção expressa de conferir dramaticidade, aproximando-a da vida. Esse o motivo por que se introduziu uma nota discordante e de repercussões indomáveis no curso da história, convertendo-a em tragédia.
O monge Christian C. e um dos terroristas
No filme, o Lago dos Cisnes como que entra em cena a par de duas garrafas de vinho para, em conjunto, abrilhantarem a festa. Foram pousadas, suavemente, na longa mesa conventual pelo monge-médico: um bondoso velhinho, cheio de salero, que não hesitava em descompor os terroristas, mas brincava com as crianças e era incansavelmente meigo com os doentes desvalidos que acorriam ao seu consultório como à casa de um avô sábio.
O brinde decorre com sobriedade, em ambiente de imensa alegria e fraternidade, também regada com lágrimas, comovidos pelo pressentimento da hora que festejam por inteiro, em jeito de hino à Vida, sem negar tudo o que ela envolve – morte incluída, como condição incontornável da humanidade. Aclamam a Vida com a mesma grandeza com que acolhem tudo o que lhes toca viver, até mesmo um final injusto e vil. O medo, tão humano, não lhes ensombra aquele momento de máxima união entre os nove, como um grupo de alpinistas a partilhar a conquista do cume, em grupo! Um feito desbravado através da amizade e da entreajuda.
Significativamente, um dos títulos de um artigo sobre o filme realçava: «A beleza do humano». A mim, ocorre-me dizer: Dos homens que viraram deuses. Porque ficam tingidos de divindade todos quantos entregam a sua vida em favor dos pobres, que imploraram a sua presença… até ao último respiro. Os monges não conseguiram faltar-lhes. Sempre tinham aceite os convites dos seus amigos muçulmanos: para as festas locais, para a partilha do dia-a-dia, proporcionando óptimas conversas, simplesmente para serem um com eles. Deixara de haver espaço para recusar partilhar – em igualdade de circunstâncias com os mais frágeis – o tsunami devastador que ia alastrando pela região.
Sabemos, nos últimos minutos do filme, que dois monges sobreviveram, tendo assim podido assegurar maior fiabilidade às imagens sobre a realidade monástica e a guerrilha.
Testemunhos sobre o filme:
- Do próprio realizador, Xavier Beauvois, que se auto-descreve como um não-crente em busca: «Estou a envelhecer. Reflicto sobre o sentido da vida. Este projecto chegou em boa altura. Documentei-me muito sobre eles, tentei saber quem eles eram. Ao descobri-los fui ficando seduzido, apaixonado por eles. E em seguida toda a equipa, de actores a técnicos, viveu estes mesmos sentimentos… Dantes pensava que nada podia ser mudado, os irmãos de Tibhirine ensinaram-me que não é assim.»
- Do actor que interpreta Christian no filme, Lambert Wilson: «A simplicidade é um dom… Creio que a simplicidade e a santidade são uma e a mesma coisa. Uma coisa é certa: Tibhirine era um local de simplicidade!»
- De Jean-Marie Rouard, membro da Academia Francesa, ao Paris Match (30.Set.2010): «É como se os monges nos tivessem despertado de um sono prolongado. Como se a sua morte nos fizesse pressentir a existência de uma outra vida... Estes monges de um convento do Atlas argelino abriram(-nos), de repente, uma porta para um infinito que ninguém supunha possível… aumentaram aquele capital anímico sem o qual a humanidade se arrisca a asfixiar. Graças a eles podemos voltar a respirar. Legaram-nos um bem sumamente precioso: a sua esperança.»
.»
E o testemunho de cada um de nós?...
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Segunda-feira)
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(1) FICHA TÉCNICA
Título Original: Des hommes et des dieux
Realizador: Xavier Beauvois Argumento: Étienne Comar
Elenco: Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin, Philippe Laudenbach
Fotografia: Caroline Champetier Som: Jean-Jacques Ferran e Éric Bonnard
Montagem: Marie-Julie Maille Produção: Why Not Productions e Armada Films
Duração: 2h02 Origem: França.
Distribuidor em Portugal: ZON Lusomundo.
NOTA SOBRE A HISTÓRIA – os factos ali reportados respeitam à guerra civil dos anos 90, na Argélia, que opôs as tropas do governo a grupo islâmicos fundamentalistas.
Presença em festivais:
- Festival de Cinema de Cannes (2010) – Grande Prémio
- Festival de Cinema de Munique (2010)
- Festival de Cinema de Karlovy Vary (2010)
(2) Ordem Cisterciense da Estrita Observância.
Um belo texto para uma magnífica sugestão aqui deixada há uns dias pelo dono do estabelecimento. Ainda não vi, mas tenho a maior curiosidade. Gostei, sobretudo, dos testemunhos publicados. De facto, a Verdade não tem fronteiras. É tão humana, e tão intangível (como a música? - mal comparado) que não há quem não a sinta, mesmo não a compreendendo. Obrigada, MZ. pcp
ResponderEliminarObrigadíssima, pcp, pelo teu comentário sempre tão encorajador. Bjs, MZ
ResponderEliminarSó agora pude ler o seu texto, que é excepcional!
ResponderEliminarSerá imperdoável falha minha se não vir este filme.
Obrigado,
fq
Acho q. vai adorar o filme, fq, porque é muito rico e subtil, ao mesmo tempo. Aliás, não é por acaso que estava a fazer imenso furor em França. Bjs, MZ
ResponderEliminarAcho q. vai adorar o filme, fq, porque é muito rico e subtil, ao mesmo tempo. Aliás, não é por acaso que estava a fazer imenso furor em França. Bjs, MZ
ResponderEliminarAcho q. vai adorar o filme, fq, porque é muito rico e subtil, ao mesmo tempo. Aliás, não é por acaso que estava a fazer imenso furor em França. Bjs, MZ
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