Um divertido filme (numa simplificação que lembra ligeiramente os fantásticos Monty Phython) propõe-se recontar essa história memorável, em versão tecnologicamente actualizada, à base de google, facebook e milhões de tiques e truques do nosso dia-a-dia… Quem não se reconhece nestas mensagens meias stressadas a organizar agendas e a promover eventos em grande aceleração?
Um outro filme, destinado a espectadores dos 8 aos 80, entrou em cartaz para a época do Natal – a última Crónica de Nárnia, baseado em mais um conto do grande escritor britânico (nascido na Irlanda do Norte), C.S. Lewis, muito amigo do autor da trilogia «Senhor dos Anéis» (J.R. R.Tolkien).
C.S. Lewis (1898-1963), nascido na Irlanda do Norte
«As Crónicas de Nárnia: A Viagem do Caminheiro da Alvorada»(1) é exaltado pelo próprio marketing por nos abrir à esperança: «return to hope, return to magic, return to Narnia». É o que se chama um «filme com alma», como disse o realizador, Michael Apted. Por isso vem tanto a propósito nesta época do ano. É assim a terra do grande leão Aslan, o país das crianças, antecâmara do mundo real (esse outro feito à medida dos adultos, inquinado por combates capciosos, encapotados, turvos). É na terra de Aslan que os mais novos se preparam para mais tarde reconhecer o seu amigo leão, com outro rosto! «Agora, é a altura de se reaproximarem do vosso mundo.»
«Mas como poderemos viver sem te voltar a encontrar?» Lucy a Aslan.
«Vão voltar a ver-me. (…) Só que ali tenho outro nome. Precisam de aprender a reconhecer-me por esse outro nome. Foi essa a razão por que vieram a Narnia, para que conhecendo-me melhor aqui, me possam reconhecer melhor na vida (real).»
As empolgantes aventuras da valente tripulação do galeão do Príncipe Caspian são, sobretudo, uma demanda profunda pelo sentido da vida, pelo crescimento em conjunto, pela busca da identidade individual. Mas sempre sob o lema um por todos, todos por um, incluindo os mais desengraçados e até sabotadores. É expressiva a aula de esgrima que o sábio rato Reepichee dá ao chatíssimo e presunçoso primo de Lucy e Edmund – o irritante Eustace. Ele é o protótipo de uma certa abordagem fria e pragmática, cínica e muito céptica, atarracada e algo calculista, defensiva e q.b. mesquinha, individualista e obviamente egocêntrica – igual a um daqueles adultos desencantados da vida, só que em ponto pequeno. Nada recomendável mas, infelizmente, bastante comum. Apanágio de todos os sobreviventes. A sua deixa favorita era exigir a presença do Cônsul Britânico para o resgatar do estranho destino a bordo de um navio onde um minotauro ocupava lugar de destaque na tripulação! Convenhamos que para um rapazinho pouco adepto de fábulas e de contos infantis, tudo aquilo era um verdadeiro excesso.
Um dos diálogos finais explica bem a atitude de vida mais saudável, nos antípodas do Eustace da fase em que ainda se levava muito a sério:
- «Bem-vindo, Príncipe», saudou Aslan, «Sentes-te apto para ser o Rei de Nárnia?»
- «Eu, Sir, não me parece…», assumiu Caspian, «sou apenas uma criança.»
- «Óptimo», retorquiu Aslan, «Se te sentisses capaz, era a prova de que não serias.»
Bondosamente, Aslan vem em socorro de Lucy, quando ela entra numa alucinação autodestrutiva, pura miragem: «Lucy, que fizeste, filha?» – ajudando-a a acordar do pesadelo em que se deixara enlaçar – «… Só tens de ser tu própria!». Um chamamento confiante (na voz poderosa de Liam Neeson), como só um pai sabe fazer, que lhe inspira coragem para aceitar a sua personalidade única. Um apelo de vida, de sobrevivência na acepção mais profunda, que a reabilita da ruptura infligida pela sedução escorregadia e oca que a consumia desde há muito:
Lucy e Aslan olham-se através das suas imagens reflectidas no espelho mágico, que transportara a adolescente para a sua aspiração mais secreta e perigosamente alheada da realidade, ameaçando comprometer-lhe o futuro e devorar a própria “sonhadora”.
De facto, o mal está longe de se restringir a seres maléficos, exteriores ao ser humano. A sua origem está, para cada um, dentro de si próprio. A aproximação da ilha negra, envolta em brumas mortíferas, tornava-lhes claro o diagnóstico do risco mais feroz que teriam de enfrentar, como desabafaram Caspian, Edmund e todos:
- Preparem-se porque vamos ao encontro dos nossos piores pesadelos.
- Dos nossos desejos mais obscuros.
- Das tentações mais ínvias e obstinadas, que ocupam os nossos pensamentos.
Nunca a magia e o encantamento são vias de escapismo à realidade, mas antes metáforas pedagógicas sobre o significado profundo da vida e do que nos move, enriquecendo esta viagem de auto-conhecimento. Os jogos de espelhos são frequentíssimos como duplo reflexo do que somos, por um lado, e limiar de um outro nível de existência, como no tal pesadelo de Lucy. Os efeitos de projecção repetem-se também para nos ensinar, através dos erros dos outros, o desfecho indesejável de opções de aspecto apetecível… até porque muito do que viam luzir era mesmo ouro. Como recomendava Eleanor Roosevelt: aprenda com os erros dos outros, porque a vida é demasiado curta para aprender tudo à sua própria custa! No efeito reflexo, o mais transfigurante, pela positiva, passa pelo grande Aslan, a presença primordial da Humanidade, que nos devolve a identidade, como aconteceu no intrincado processo de crescimento de Eustace.
O Caminheiro da Alvorada através do olhar regenerante de Aslan, onde o efeito de espelho consegue o desejado upgrading
No encontro final, depois de suplantarem os vários patamares de tentações que aprenderam a enfrentar, o Príncipe Caspian assume corajosamente: Tenho-me preocupado mais com o que perdi (do Reino de Narnia) do que em saborear e melhorar o muito que me foi dado!
Vem a propósito lembrar um pensamento sugestivo de Agostinho de Hipona (354–430, doutor da Igreja) sobre esta passagem pela vida desbaratando o bem mais precioso que é o tempo:
«Os homens viajam para conhecer os píncaros das montanhas, a crista das ondas colossais, o longo curso das águas dos rios, a imensidão dos oceanos, o movimento circular das estrelas; e passam pela vida sem se conhecerem a si próprios.»
Também Chico Buarque lança um alerta semelhante, dito pelo avesso da questão:
«Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma.»
Foi a nascente que surgiu a estrela dos Magos. Foi também no Mar do Oriente que o navio de Nárnia, o «Caminheiro da Alvorada», navegou em busca dos 7 fidalgos do Reino. Mas em 2010 foi bem a Ocidente que o espírito de Natal inaugurou os festejos, quando num fast-food de um Centro Comercial do Canadá um grupo coral surpreendeu o público com um momento musical glorioso. Aquela hora de almoço do Sábado, 13 de Novembro, entrou para a história. No Youtube já é dos vídeos mais vistos, a ponto de a soprano que inicia a música, simulando falar ao telemóvel – Stephanie Tritchew – se ter convertido em celebridade no curto espaço de um mês, graças à net:
Sob o efeito da surpresa, os clientes daquele fast-food nem se lembraram de seguir a tradição e ouvir de pé o Aleluia do «Messias» de Händel, como ficou consagrado na estreia de Londres, a 11 de Dezembro de 1742, quando o rei Jorge II se levantou e, com ele, toda a corte, mal o coro iniciou a polifonia apoteótica: «Hallelujah, hallelujah… King of Kings, forever and ever hallelujah hallelujah / And lord of lords forever and ever hallelujah hallelujah ...»
Votos de Feliz Ano de 2011, luminoso e cheio de novas e óptimas aventuras,
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Segunda-feira)
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(1) FICHA TÉCNICA
Título original: THE VOYAGE OF THE DAWN TREADER ~
Titulo traduzido em Portugal: As Crónicas de Nárnia: A Viagem do Caminheiro da Alvorada
Realização: Michael Apted
Produção: Mark Johnson, Andrew Adamson, Philip Steuer
Elenco
GEORGIE HENLEY (Lucy)
SKANDAR KEYNES (Edmund)
BEN BARNES (Caspian)
Will Poulter (Eutace)
LIAM NEESON (voz de Aslan)
Estúdio 20th Century Fox/Fox Walden.
Duração: 127
País: ESTADOS UNIDOS
Site official - http://www.narnia.com/
Fiquei com vontade de ver este filme... gostei do que contaste e dos quotes que fizeste. Bom ano para ti, MZ. Bjs. pcp
ResponderEliminarÓptimo ano tb para ti, pcp, em que as "aventuras" do dia-a-dia tenham um toque narniano, como dizia Lucy quando vislumbrava alguma pessoa ou paisagem sugestiva... Bjs, MZ
ResponderEliminarMZ,
ResponderEliminarNão podia gostar mais do seu post. Diz coisas importantes de maneira levezinha juntando Tecnologia, História, Estilo de Vida, expressões humanas apanhadas de surpresa lindíssimas. Fantástico cocktail.
Obrigada.
Obrigadíssima tb a si, Maria L., pela sua mensagem tão a ver com gins & cocktails, ideal para brindarmos ao Novo Ano, em que lhe desejo um tempo mto luminoso e feliz. Bjs, MZ
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