Quando em 2008/09 o maestro finlandês, Esa-Pekka Salonen, aterrou em Londres para gerir os destinos da Philharmonia, convidaram-no a arquitectar projectos de divulgação dos compositores clássicos nas Ilhas Britânicas, tentando importar a revolução que acabara de operar na Filarmónica de Los Angeles.
Assim nasceu a ideia de criar uma instalação digital, que permitisse ao público ouvir um concerto imergido no meio da orquestra, a acompanhar a regência de Salonen na perspectiva única que se tem do palco e… até mesmo agarrar na batuta e dirigir os músicos.
Explico-me melhor: depois de percorrer as salas recheadas de 29 ecrãs gigantes, em alta definição, a visita desagua num compartimento circular, com a régie à nossa disposição para fazermos experiências de som, alterando o volume dos vários instrumentos, na posição de maestros. Há também um espaço onde se podem tocar instrumentos. Nas salas iniciais, a música é ouvida junto ao naipe de músicos que aparece no ecrã. O primeiro é o dos violinos. Em frente às nossas cadeiras está a estante com a partitura que está a ser executada mesmo ao lado.
Não deve ter sido nada fácil descobrir a peça ideal para aguentar as fantasias dos espectadores, permitir desdobragens de som por naipes e proporcionar diferentes níveis de leitura, mantendo o público interessado, apesar de a maioria estar mais familiarizada com a sonoridade soft e popular das rádios. Esse terá sido o primeiro grande desafio. E a escolha recaiu sobre o repertório russo do princípio do século XX com a épica SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA (The Rite of Spring, de onde deriva o título da exposição), de Igor Stravinsky (1882-1971), de uma riqueza e densidade acústicas difíceis de igualar. Basta lembrar que há 101 músicos em palco! Um colosso.
Igor Stravinsky passou a infância em S.Petersburgo;
em 1910 mudou-se para a Europa (França e Suíça); com o
eclodir da II Guerra radicou-se nos EUA, onde morreu em 1971.
Alguns dados sobre esta peça magnífica: seguindo a boa tradição russa, também a Sagração está associada a um bailado, preparada em parceria com o empresário dos Ballets Russes, Sergei Diaghilev, e estreada em Maio de 1913, no coração de Paris: Teatro dos Campos Elísios. O ritual pagão e sacrificial em que Stravinsky se inspirou, chocou o público (houve verdadeira batalha campal no dia da estreia(2)), mas revolucionou a composição musical, inaugurando harmonias totalmente inovadoras, com inúmeras dissonâncias. E não pouca polémica, claro…
A própria coreografia – do famosíssimo bailarino Nijinsky – incorporou toda a intensidade rítmica e orquestral daqueles timbres vanguardistas, vertiginosos, exacerbados, adoptando movimentos abruptos, primitivos, selvagens, ditos «rústicos», que perturbaram a audiência, tanto mais que eram dançados pelos míticos Ballets Russes, que faziam furor na Cidade das Luzes. A parceria entre Stravinsky e Diaghilev redundou num sucesso rotundo, apesar de tudo, tendo dado origem a uma sequência de bailados lendários: «Pássaro de Fogo» (1910), «Petrushka» (1911) e «A Sagração da Primavera» (1913). Tudo o que envolvia os Ballets Russes era, só por si, um acontecimento: desde os figurinos à cenografia, passando pelos bailarinos e rematando na orquestração genial de Stravinsky. Artistas como Picasso, Matisse ou o poeta e cineasta Jean Cocteau colaboraram na concepção dos espectáculos, tornando-os memoráveis. Nunca em tão pouco tempo se fez tanto pela arte da dança.
De facto, a composição musical sublima toda e qualquer temática, envolvendo-nos em ritmos arrebatadores, vibrantes, excessivos e contagiantes, que nos franqueiam uma nova dimensão. Nas palavras de Salonen, a peça situa-se fora do tempo e toca a eternidade. Este comentário insere-se na explicação do maestro sobre o desenrolar do concerto, que pode ser visionada num dos ecrãs da exposição.
Há passos da Sagração que remetem para a criação do mundo. É como se recuássemos até ao Big Bang, até ao despertar mais ancestral da vida. Diria que Stravinsky nos convida para um concerto cósmico, onde ousa dirigir as próprias forças da natureza, indomáveis, ao rubro. Vulcânico e lindíssimo! Segundo declarações do compositor: «Sou o veículo através do qual passou A Sagração da Primavera (…) Tive uma soberba visão repleta dos mais inusitados efeitos sonoros indefiníveis...»
A Sagração revolucionou o paradigma da construção musical, anunciando uma Primavera muito fecunda na história da arte ocidental, como tinha pressentido o seu autor. Os cânones tradicionais são ignorados, o ritmo assume a primazia, a sonoridade reveste-se de timbres exóticos com os instrumentos a tocar em registos inusitados (ex: o fagote em agudíssimo) e com uma intensidade alucinante, as assimetrias e variações rítmicas sucedem-se em catadupa, as transições do fortíssimo para o pianíssimo superabundam, a reiteração de uma polifonia de tonalidades muito díspares cria uma concentração de energia acústica extrema. Até do ponto de vista físico é uma peça esgotante para os músicos. Percebe-se que tenha originado um degelo algo subversivo, que ainda hoje nos chega com uma novidade incrível. Nesse sentido é, provavelmente, das obras mais resistentes à banalidade, conservando uma frescura e uma inexpugnabilidade ao vulgar que a tornam verdadeiramente genial.
O «Re-Rite» nas palavras dos organizadores:
- O maestro Salonen: «Estar no meio de uma orquestra, experimentar a sensação de 101 músicos a tocar a Sagração, faz correr a adrenalina, e é algo que quero partilhar com o mundo.»
- O produtor Richard Slaney sobre a escolha da Sagração: «Porque é a peça definitiva de música clássica. Tem tantas camadas, tantos instrumentos e tantas coisas a acontecer! É uma peça muito dinâmica e excitante, e beneficia imenso de a desconstruirmos um pouco e entrarmos no seu íntimo, ganhando uma noção do que cada parte (dos músicos) está a fazer. (…) A Sagração foi roubada por todos os compositores para o cinema. Se não se souber muito de música clássica, há (…) acordes e atmosferas no início da segunda parte que parecem saídos d’A Guerra das Estrelas.»
Quis o Criador precisar de nós para acrescentar qualquer coisa à criação. Felizmente para a humanidade, Stravinsky deu o seu melhor e fez a diferença!
Fica ainda o convite para outra experiência única: aterrar nesta cidade azul e plena de luz que é Lisboa, desfrutando a vista soberba a partir da janela do cockpit. Uma paisagem inspiradora para o primeiro mês do Novo Ano.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Mude - Museu do Design e da Moda - R. Augusta, nº 24. Tel. 21 8 886 117.
http://www.mude.pt/mude_site.html.
HORÁRIO: 3ª a 5ª e Dom. – 10h00-20h00. 6ª e Sáb. - 10h00-22h00.
(2) No breve espaço de um ano, os franceses conseguiram digerir o choque inicial e reconhecer a beleza assombrosa da Sagração.
Stravinsky registou este volte-face fantástico na segunda audição da peça, em Paris: «Foi uma esplêndida reabilitação. A sala estava repleta. O público, já não distraído pelo espectáculo, ouviu o meu trabalho com uma atenção concentrada e aplaudiu-o com um entusiasmo que me emocionou muito e que estava longe de esperar. Alguns críticos, que anteriormente tinham depreciado a Sagração, confessaram abertamente o seu erro» (in «Crónicas da minha vida»)
Maria Zarco,
ResponderEliminarGostei muito do seu post. Compreendo Salonen - «A peça situa-se fora do tempo e toca a eternidade.» É isso mesmo!
Ah, e claro aterrar em Lisboa no cockpit foi fantástico:)
Salonen usa expressões muito fortes ao referir-se à vitalidade incrível da Sagração, afirmando que com esta peça magistral «Stravinsky descobriu a fonte da eternidade.» Nestas coisas, o difícil é fazer a escolha, porq. há tanto para contar... Obrigadíssima pelo seu comentário tão simpático, MZ
ResponderEliminarMZ, I always get goosebumps arriving in Lisbon, especially if the flight takes us over Rio Tejo and allows a view of Caparica and Ponte 25 Abril and then over the city. Thx, PO
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