28 fevereiro 2011

Vai um gin do Peter’s ?

Não sendo nada óbvio que um jovem príncipe gago e hiper medroso ofereça a Hollywood um argumento de sucesso, o facto é que «O DISCURSO DO REI»(1) é um filme já aclamado por multidões. Porque será, para além dos excelentes desempenhos onde Colin Firth sobressai?

Creio que vários elementos positivos convergem nesta narrativa, justificando tamanha popularidade, muito para lá da excelente reposição da época ou do glamour da vida de corte, bem pouco filmada. Aliás, o espaço mais visto até é a clínica de um talentoso terapeuta da fala, improvisada numa subcave obscura de Londres. O próprio elevador acatitado dá nota da falta de sofisticação do prédio e do bairro modesto onde Sua Alteza Real iria passar boas temporadas. E aí arranca a história no sentido de que um novo horizonte, inimaginável mas possível (aliás, verídico), se franqueou generosamente a quem tanto precisava de apoio de vária ordem.

Um passo atrás para se desbravar melhor a arquitectura de um argumento: claro que a narrativa começa pela exposição do problema – uma disfunção clamorosa para um príncipe, votado a um futuro quase de clausura social para se proteger dos olhares (e ouvidos) do mundo. Pobre menino rico!

O príncipe

O alterego no filme

Valia-lhe, o que não é pouco, o apoio incondicional da que veio a ser conhecida por Rainha Mãe, que nos recuados anos 30 era, simplesmente, a mulher do príncipe gago – o Duque de York.

Esgotadas as buscas incessantes (e algo humilhantes) de ajuda nos consultórios dos especialistas conceituados, acabaram por ceder às solução de recurso, nada ortodoxa e com o desconforto do vão-de-escada, neste caso do bas-fond, em sentido estrito. Aí, the sky was the limit… e aquilo que parecia condenado ao fracasso converteu-se em trunfo. Como foi possível de um homem tão amachucado e algo diminuído emergir um soberano corajosíssimo, irredutível e até com um dom de comunicação muito frontal e genuíno? Um dom talhado no combate esforçado para suprir a sua fragilidade endémica, domada com suor e lágrimas, bem perto da fórmula de Churchill a convocar a nação para as armas, salvaguardadas as devidas proporções. Ninguém melhor que o príncipe lutador para enfrentar a onda nazi, que ensombrava a Europa, ameaçando devastá-la de um trago. Revelar-se-ia a pessoa certa na hora e no sítio certos. Uma história providencial até ao mais ínfimo detalhe.

Na óptica da narrativa cinematográfica, o desafio assumido perante o espectador foi assim expresso: «Simply fill(ing) you with joy» (sic). Nesse sentido, escolheu-se o melhor happy-end: a confirmação da possibilidade de superação do ser humano. Fruto de um processo árduo mas tanto mais credível e sólido quanto tenha sido sustentado pelo maior poder transformador da humanidade – o amor gratuito, a amizade profunda. Daí que boa parte do filme acompanhe as sessões terapêuticas, onde a amizade entre o difícil doente e o talentoso ortofonista se revelou um fármaco prodigioso. De certo modo, o milagre começara a rolar logo na primeira consulta, bem atribulada, quando Sua Alteza passou a ser reconhecida pelo diminutivo exclusivo da família – Bertie (simplificação carinhosa de Albert), sem quaisquer formalidades, nem outras barreiras que se adivinhavam vir a ser derrubadas com a eficiência da Luftwaffe. «My castle, my rules», exigia Lionel George Logue (1880-1953) no perímetro do seu consultório. Todos os ingredientes da relação de amizade foram emergindo, conquistados a pulso pela perseverança incrivelmente audaciosa de Logue. Coube, depois, ao príncipe a audácia de desafiar o protocolo e exigir a presença do seu salvador na cerimónia da coroação, na própria tribuna real.

O eficiente terapeuta / o alterego no filme

O momento soleníssimo do primeiro discurso de Guerra (3 de Setembro de 1939) proferido por Jorge VI, maravilhosamente redigido, constitui o clímax da estatura de um grande rei, já a saber responder aos desafios da época, onde a voz da rádio fazia furor (para azar do monarca). A mestria tinha-lhe sido inculcada pelo saber e, sobretudo, pela amizade paciente e pedagógica do especialista da fala, único acompanhante naquela gravação histórica, que mereceu os aplausos dos próprios técnicos da BBC, encantados com a estreia exímia do novíssimo soberano, a suplantar a frieza pouco humana dos microfones. Aquela pequena vitória fonética, crivada de bloqueios psicológicos e pânicos, realçava a vontade intrépida de não se esquivar ao combate. Uma coisa era reconhecida por todos: o rei que fora coroado a contragosto, arcava ali por inteiro o fardo régio, precisamente nas circunstâncias mais indesejáveis e hostis. O ritmo pausado do discurso até acentuava a gravidade do momento. E mesmo a falha no soletrar dos “w” constituía a sua marca de identidade, tal qual era.

Até na ortofonia os Duques de York eram cúmplices

Muitos outros discursos se seguiram, sempre na companhia do fiel Logue, uma ajuda selada pela amizade, até à morte. De igual para igual, sem títulos, como fora imposto na primeira consulta. Um caso único entre os súbditos de Sua Majestade, exceptuando naturalmente os membros da família Windsor. E se os ingleses pugnam pelas cortesias, distinguindo classes, raças, tudo com um crivo rigorosíssimo! Recorde-se, no filme, os remoques mordazes a Logue nos testes para actor de uma peça de Shakespeare, discriminando-o pela pronúncia pouco British. Ainda assim, serviu para reabilitar a fala do rei do Império Britânico. Felizmente que a vida consegue ser mil vezes mais criativa e irónica (em sentido benigno) que nós…

Os momentos cruciais dos avanços terapêuticos de Bertie são enfatizados por peças musicais que condizem com o estatuto do doente e com a cultura de Logue, um shakespeareano inveterado. Nas palavras do responsável pela banda sonora – compositor de uma peça original para a película – «Este é um filme sobre o som da voz. A música deve lidar com isso. A música tem de lidar com o silêncio. Tem de lidar com o tempoNa consulta inicial somos embalados pela Abertura das Bodas de Fígaro, de Mozart, enquanto decorre a gravação de uma voz fluente em que o príncipe (mais tarde) dificilmente se reconheceria. No discurso a anunciar o estado de guerra ressoa o fundo majestoso da VII de Beethoven (Allegretto), considerada por Wagner, Schumann e tantos outros a «celebração da vida», a «Sinfonia de Festa». Acresce ainda que a VII (de 1813) carrega o peso e o privilégio de ter comemorado um triunfo mais antigo, sobre o maior estratega militar de todos os tempos – Napoleão Bonaparte. Sob a batuta de Beethoven, foi executada durante o Congresso de Viena (Dez.1814) para as Casas reinantes da Europa, reunidas na capital do Império Austro-Húngaro:




Curiosamente, esquivaram-se à escolha previsível da V Sinfonia, cujas célebres notas inaugurais abriam as emissões da BBC dirigidas à Resistência. Aliás, o «V» tornou-se rapidamente o gesto de vitória reivindicada, desde a primeira hora, pelos adeptos da causa aliada.

Curiosa também a escolha da sonoridade radiosa do «Imperador» de Beethoven, a assinalar o êxito pouco óbvio do discurso real, que nos envolve na alegria festiva e cheia de afectividade que Jorge VI tanto apreciava, nada dado ao rodopio social em que o seu irmão mais velho era viciado.



Abbado e Barenboim numa dupla fantástica a executar

o «Imperador» de Beethoven – Concerto para Piano nº 5, Op. 73.

A relação de cumplicidade em crescendo, ao ritmo empolgante das melhoras do soberano, fazem-nos ter pena de que o filme acabe, até porque em Setembro de 1939 a Grã-Bretanha lançava-se num empreendimento heróico, que apetecia rever no ecrã. Reza a história que na luta anti-nazi os reis assumiram a sua parte, ao lado do povo, consolando os doentes, animando as tropas, visitando os desalojados nos escombros, recusando-se a deixar Londres, sem medo dos bombardeamentos nem dos black-outs diários. Percebe-se que Hitler tenha declarado a rainha inglesa como a mulher mais perigosa da Europa, incapaz de vergar. Um elogio rasgado, vindo de onde vinha!

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

__________________________

(1) FICHA TÉCNICA

Título original: THE KING’S SPEECH

Titulo traduzido em Portugal: O DISCURSO DO REI

Realização: Tom Hooper

Argumento: David Seidler.

Produção: Iain Canning, Emile Sherman, Gareth Unwin

Elenco
Colin Firth (Bertie)
Geoffrey Rush (Logue)
Helena Bonham Carter (Elisabeth)

Música original de: Alexandre Desplat

Estúdios See Saw Films Bedlam Productions

Duração: 111 min.
País: Reino Unido

Site official - http://kingsspeech.com/

Prémios: galadoardo com Globos de Ouro e nomeado para 12 Óscares.




6 comentários:

  1. Um belo e extenso comentário sobre um filme muito edificante e bonito. Bom para qualquer idade e em qualquer situação. Obrigada, MZ. pcp

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  2. Tb acho um filme óptimo para todas as idades. Sem ser o filme da nossa vida, é uma história bem interessante e com "boa onda", digamos. Bjs, MZ

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  3. Óptimo post MZ:)
    Ainda bem que a li. Tarde e a más horas - hoje calhou assim.
    Obrigada.

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  4. Obrigadíssima, Maria Lemos, por ir acompanhando os posts e pelas suas palavras. MZ

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  5. Maria Z, you put so much research and consideration into your texts, always interesting and thought-provoking. I wonder how you know so much about our monarchy, or were you inspired to find out more after seeing this film? I loved the film, and plan to see it again. The central acting performances are brilliant; wonderful rapport between Colin Firth and Geoffrey Rush, and an amazingly subtle portrayal by Helena Bonham-Carter of the quiet strength and subversive humour of the Queen (Mother). A wondeful "small" story that serves as a universal microcosm of triumph through adversity.
    Actually i thought that A Social Network would win Best Film Oscar because it represents our current world, but maybe The King resonates more closely with the older generations of Oscar Academy voters. Both great films in my opinion, but as Spielberg said before presenting the Oscar, one winning film will join great films such as All Quiet on the Western Front, Gone With The Wind, Casablanca, In The Heat Of The Night, Godfather, Cuckoo's Nest, Schindlers List, Slumdog; and the 9 "losers" will join with Citizen Kane, Wizard Of Oz, Grapes Of Wrath, It's A Wonderful Life, The Graduate, Elephant Man, Dead Poets Society,Shawshank Redemption. So really, not losers at all... thx, PO

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  6. Thank you Philip for your message.
    Concordo 100% com as observações sobre a diferença de "opiniões" entre a Academia de Hollywood e o público. No fundo, o tempo acaba por ser o óscar mais poderoso e fiável! Aliás, na escolha dos filmes para os posts, sigo mais o gosto pessoal do que os prémios oficiais. Sobre história tenho a dizer que é um campo que adoro explorar, em especial a europeia. E os posts resultam-no num bom incentivo para investigar mais, MZ

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