Santo Preso era uma terra que se fez entre a espada e a parede. A espada era a floresta. As lendas que passavam de geração em geração tornavam-na num local proibido. Apesar do padre repetir até à exaustão que quando alguém morria ia para a morada eterna, a grande maioria dos habitantes continuava a ter outra opinião. Os mortos partiam realmente, mas não iam para tão longe. Iam ali para o lado, para o lado de lá daquela muralha de ramos e folhas. À espera, paciente e eternamente, que alguém mais desprevenido passasse por ali para tomar o seu lugar. Por estas lendas estarem tão enraizadas, eram poucos os que se aventuravam a lá entrar.
A parede era o mar. Por aí não havia entrada ou saída possível. A terra acabava numa escarpa que caía a pique para cima do oceano. E este não caía ou acabava em lado nenhum. Esticava-se e espreguiçava-se até onde os olhos iam. Sempre no mesmo sítio, imóvel e infinito.
Fora a dificuldade de acesso, esta vila era igual a todas as outras. Todas as ruas desembocavam no largo central, que tinha uma fonte de tamanho exagerado relativamente aos edifícios vizinhos. Esta fonte era o grande motivo de orgulho da cidade e foi o maior investimento que alguma vez lá foi feito, mas desde a sua construção nunca se conseguiu que de lá saísse uma única gota de água.
De um lado do largo havia o único restaurante da cidade, sugestivamente chamado 'A Melhor Escolha'. Servia todos os dias pastéis de bacalhau, croquetes e rissóis de camarão do dia anterior. Às Quartas-Feira havia cozido, às Sextas bacalhau e aos Domingos fechava na hora da Missa.
Do outro lado da fonte estava a igreja. Missa ao Domingo de manhã e à Quarta-Feira, depois do cozido, por alma dos finados. Os tais que se mudaram para a floresta. No princípio do Outono era altura da procissão. Pedia-se chuva a S. Sebastião, não muita, só alguma, para as plantações crescerem saudáveis. Seis meses depois voltava-se à carga outra vez. Mais outra procissão, mas agora pedidos de sol e calor. Também não muito, só algum, para as plantações não morrerem afogadas. E isto novamente ao mesmo santo. S. Sebastião não tinha descanso nesta terra!
O médico dava consultas à Segunda e Sexta-Feira, mas o seu consultório estava aberto toda a semana. Muitas pessoas só queriam ir à sala de espera para ter alguém com quem falar sobre as maleitas que as afectavam. Resultava bem, a maioria das doenças curavam-se assim.
E a vida desenrolava-se, esticando-se e espreguiçando-se como o mar, sem atribulações de maior. Excepto uma vez por ano. Na altura das escolhas. Este era o termo utilizado. Não eram eleições, não se ia a votos, não era a altura das grandes decisões. O povo limitava-se a fazer escolhas. E estas não eram só relativamente ao Presidente da Câmara, mas a todos os empregos de maior importância na vila. O padre e o médico. O padeiro, o carteiro e o cozinheiro. O presidente e o chefe de polícia. Todos estes estavam sujeitos à escolha da população.
Qualquer pessoa podia candidatar-se a um destes cargos, não tinha de ter a formação que este exigia. Se alguém achasse que faria um melhor trabalho nas missas e nas procissões, inscrevia-se para padre. Se houvesse quem não estivesse contente com o consultório médico, então oferecia concorrência a quem lá mandava.
Devido a esta peculiaridade havia quem, de um ano para o outro, passasse de plantar batatas para diagnosticar gripes e unhas encravadas. Quem trocasse o óleo de fritura da cozinha pela água benta da igreja. Ou ainda quem passasse do bloco de notas das multas para as notas do banco. Aqui, a democracia era realmente para todos.
SdB (III)
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ResponderEliminarCada vez gosto mais de o ler. E as suas intervenções políticas são sempre sugestivas. E sabe porque é que a sua cidade é boa? Por que é muito à portuguesa: cada um faz o que lhe apetece e muda quando está maçado. Like like like. mfm
ResponderEliminar*3ª linha leia-se: 'Porque'
ResponderEliminarSdB III no seu melhor.
ResponderEliminarSó me preocupa o médico. Acha que quem sabe medir a temperatura do óleo das frituras e a altura certa de enfiar a escumadeira no rissol, também sabe retirar um apêndice necrosado? Talvez sim.
Para todos os efeitos somos governados por incompetentes e desajustados, ao menos que fosse como na sua aldeia, todos conhecidos e/ou vizinhos. Sempre estavam mais próximo.
Excelente ! Muito criativo, bem escrito e com graça. Gostei bué :-)
ResponderEliminarMaf