29 maio 2011

Crónicas de um peregrino urbano (I)

Devo a minha relativa boa saúde pulmonar ao desejo pelas viagens, não à prática do desporto. De facto, numa altura pré-socrática em que a generalidade do País (estávamos no final dos anos 70 / início dos 80) vivia dentro das suas possibilidades, restava-me, para satisfazer o desejo de conhecer outras partes, uma alternativa contabilística simples: ou reduzia as despesas, ou aumentava as receitas.

Corre nas veias da família um sangue determinista: a incapacidade para o negócio e para o enriquecimento. Há gente intolerante à lactose, há gente que borbulha na face por petiscar beringelas; há, ainda, aqueles que só não desenham um cavalo com quatro patas paralelas porque a cultura geral lhes diz que a anatomia do equídeo é diversa. Nós, membros de uma família mais alargada que comunga das mesmas características, somos tudo isso - a intolerância, a alergia, a impossibilidade. Não me orgulho, confesso, mas cheguei a esta idade e o pagamento trimestral do IVA dá-me mais que pensar.

Retomo o fio à meada. Para poder viajar deixei de fumar porque, no ou contabilístico acima, a primeira opção vingava sem apelo nem agravo. Como aumentar as receitas, com um ADN a remar teimosamente em sentido contrário? Muitos da minha família - ou talvez de uma classe social mais alargada - ficaram-se pela pátria lusa, classificando a prática, in loco, de uma língua estrangeira como algo de vagamente esotérico, ou demasiado arrojado para um sangue que pedia servos da gleba, criadagem, marialvices e castiçagem - além de vinho tinto.

Em 1979 - nos caixotes de lixo ainda se vim os despojos de um Natal colorido, celofánico e sem FMI - embarquei para Macau, onde me aboletaria em casa de amigos. A viagem Lisboa Honk-Kong custava (eu só pagaria 10%) 600€ em moeda actual. Uma fortuna, considerando que já lá vão 32 anos. Viajar era uma actividade (quase) de elite, os aviões um desfile de gente decentemente vestida, servida por tripulações simpáticas e profissionais que nos serviam refeições quentes com um vagar de slow-food.

Alonguei-me, como sempre. Voltarei talvez amanhã, porque os dias também se ocupam assim.

JdB

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