06 junho 2011

Vai um gin do Peter’s ?

A Guerra Civil de Espanha (1936-1939) é bem revisitada no filme «ENCONTRARÁS DRAGÕES»(1), assinado pelo realizador britânico de filmes premiados como «A Missão» (The Mission) e «Terra Sangrenta» (The Killing Fields) – Roland Joffé. As filmagens foram rodadas na Argentina, para facilitar a reposição de época, no primeiro e segundo quartéis do século XX espanhol. Joffé retoma a linha das epopeias históricas, pontuadas por figuras marcantes, num embate entre perfis psicológicos e mundivisões opostos.

Através da voz-off e de um jornalista contemporâneo, a trama recua em flash-back para os momentos-chave da vida de dois homens, nos remotos anos 30. A escolha de um cenário de situação extrema, que é um confronto armado, cria o espaço favorável à tomada de posições claras, reveladoras das personalidades em acção, como se pretende. É a hora dos grandes ideais e dos radicalismos, dos actos nobres e das maiores vilanias. Tudo isto no estilo saleroso e q.b. exagerado dos espanhóis. Habilmente, a banda sonora inclui música gitana, cujos ecos de flamengo nos transportam de imediato para o país aguerrido e de pulsões fortes de uma Espanha ao rubro.

Naquele conflito digladiam-se duas ideologias divergentes e escolhas de vida/vocações antagónicas. A nível político, observamos a complexidade de uma guerra onde potências estrangeiras ensaiam, em solo espanhol, o jogo de forças que eclodiria em 1939: a Rússia de Estaline versus a Alemanha de Hitler e (em muito menor grau) a Itália de Mussolini.

Paralelamente ao combate político-ideológico, também as histórias pessoais desfilam perante nós, em contraste máximo, para evidenciar a possibilidade de eleger rumos distintos e invulgares, mesmo nas circunstâncias mais ingratas, que pareceriam condicionar as alternativas. Porque, além da beligerância pura e dura, também é possível recusar o uso das armas, como faz a personagem aqui biografada. Assim, ergue-se de um lado um sacerdote (factual) de pouca idade e muita iniciativa, empenhado em lançar um “movimento” cristão – o Opus Dei – suplantando os inúmeros obstáculos que a frente anti-clerical lhe levanta. Do outro, um colega (ficcional) de infância – Manolo – bate-se ferozmente pelos franquistas, actuando como agente infiltrado nas hordas republicanas.

Aqui brilha o fogoso actor brasileiro Rodrigo Santoro, no papel de líder carismático. Arrebatador. Irresistível. Cheio de ideal. Tudo nele é incendiário, das palavras de ordem ao ânimo magnetizante nas trincheiras. Claro que a correligionária, vinda da Hungria, cedeu logo ao olhar sedutor do herói do povo. Cou de foudre instantâneo!

Só que a felicidade dos dois resultou na dor de outro… pois Manolo também ficara enfeitiçado pela bonita passionaria húngara, pronto a conquistá-la a qualquer preço. Recuamos, então, àquele episódio da sua infância, onde a voz-off confidencia que a inveja criara raízes naquele rapaz difícil e egocêntrico. Aliás, é na inveja e no revanchismo que ele encontra élan para a sua ingrata missão durante a Guerra, constantemente a trair o pelotão vermelho que o tomava por um dos seus.

Muito à espanhola, quase todo o desenrolar da narrativa é cru e directo. A começar pelas personagens. Quer no mal, quer no bem. Assemelham-se a quadros temáticos sobre: a raiva, a cobiça, o desdém, a mentira; ou nos antípodas a lealdade, a bravura, a bondade, a misericórdia… Num, Manolo; no outro o jovem sacerdote ou até o chefe republicano idealista, também um puro à sua maneira. Em Manolo, a agressividade inquinada pelo ciúme desfiguram-lhe o rosto e endurecem-lhe os modos, a ponto de a charmosa húngara o recusar liminarmente, ela que era tão sociável com a maioria. Ironia das ironias, ela devolve-lhe o mesmíssimo desdém que ele reserva aos outros… mas nunca a ela, a quem mendiga, em vão, um mínimo de atenção.

Enquanto nele crescem dragões, como cogumelos, alimentados pela aspereza inglória do dia-a-dia nas barricadas, no pólo oposto Josemaría Escrivá (1902-1975) luta pelo futuro, sem outra arma para além da fé. A fé que, naquela altura, se traduz na ajuda às vítimas de uma guerra sem vencedores. Apenas com milhares de mortes a amontoar-se nas ruas. São conhecidos os relatos da barbárie nas grandes cidades, tingidas de sangue. Note-se que a visão dantesca sugerida por Joffé mantém um registo sóbrio, sem carnificinas explícitas. É a própria história que nos recorda aqueles anos terríficos. Basta lembrar que a tela mais emblemática do horror belicista – a «GUERNICA» de Picasso – reevoca os bombardeamentos devastadores da Luftwaffe contra uma remota povoação basca, perpetrados a 26 de Abril de 1937, com o beneplácito de Franco.

De facto, o realizador explora maximamente as motivações das personagens, num período fértil de convicções como é a guerra. Todos lutam: seja os revolucionários, mal armados mas destemidos e cheios de picardia; seja os falangistas, com uma poderosa aviação (alemã) mas sem conseguir grandes avanços; seja a minoria ínfima que se bate pela paz, com as armas da paz. Em todos há bravura, empenho e vontade de vencer. Até mesmo no cidadão anónimo. Curiosamente, os gestos de coragem surgem onde menos se espera: num tipo mal encarado, numa estudante desprotegida, numa mulher maltratada, ou até num Manolo que reconhece e salva, à distância, o seu ex-amigo dos bancos da escola. Também o jovem sacerdote, que só foge in extremis, quando a perseguição à Igreja o impede de permanecer em Madrid, vive com galhardia a atribulada fuga, onde rasa frequentemente a morte.

Joffé quis filmar a santidade impregnada de um dia-a-dia prosaico, conforme entendeu ser a proposta de Josemaría Escrivá. Logo no início, a voz-off abre com uma citação de Oscar Wilde, a dar o mote desejado: «Não há santo sem passado nem pecador sem futuro».

Numa entrevista à CBN, o realizador-argumentista defende que: «You find your religious experience not only in liturgical things or in the church, but in the very act of living in your daily life… (I wanted to) make a movie about life… I think a saint is someone who in a certain time or place pushes a door open, so that light may shine through. (…) As you approach God, He doesn’t ask you what you learned, He wants to know who you are… What we hunger for is to ask questions: Who are we? Why are we?....»

Percebe-se que até ao último fôlego as sortes não estão fechadas para ninguém. Mesmo para os incorrigíveis e relapsos. Há ainda uma réstia de oportunidade para reacertar o caminho. Precisamente, do perdão dado e recebido nasce sempre algum bem. Reparam-se males passados. Resolvem-se ou, ao menos, atenuam-se escrúpulos corrosivos. Removem-se ou reduzem-se vícios cristalizados. Mais: iluminam-se memórias sombrias! Porque esta é uma guerra só com vencedores, a começar pelo próprio. Nem que seja à vista da morte…

À letra, vive-se ali a certeza de que enquanto houver vida, haverá esperança. Pois, onde a esperança tiver a última palavra, a morte dará lugar à Vida.

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) FICHA TÉCNICA

Título original: THERE BE DRAGONS

Título traduzido em Portugal: ENCONTRARÁS DRAGÕES

Realização: Roland Joffé (que já foi premiado com Óscar)

Argumento: Roland Joffé

Produzido por: Inácio Gomez-Sancha, Roland Joffé, Inácio Muñez e Guy Louthan

Direcção Artística: argentino Eugénio Zanetti (que já foi premiado com Óscar)

Fotografia: do mexicano Gabriel Beristain

Guarda-roupa: Ivonne Blake (que já foi premiada com Óscar)

Caracterização e maquillage: Michelle Burke (que já foi premiada com Óscar)

Banda sonora: Stephen Warbeck

Duração: 122 min.

Ano: 2011
Países: EUA / Espanha / Argentina

Elenco

Charlie Cox (Josemaría Escrivá),

Wes Bentley (Manolo)

Dougray Scott (Robert)

Olga Kurylenko (Ildiko)

Unax Ugalde (Pedro)

Rodrigo Santoro (Oriol)

Geraldine Chaplin (Abileyza)

Ana Torrent (Dolores)

Site oficial: http://twitter.com/#!/ThereBeDragons


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