06 julho 2011

Carta a um anjo

Nasceste hoje, mas há dezassete anos.

Lembro com perfeição as condições humanas em que ouvi, pela primeira vez, que o tempo não cura nada, o que cura é a qualidade do tempo. Já sentíamos o vendaval dentro de nós, sabes, mas ainda sobrevivia aquela garra de timoneiro que, na fragilidade de um tempo sereno que acabou, luta por salvar o barco. Apesar de uma vontade oposta, a expressão naufrágio já estava escrita num negro premonitório.

Não mais esqueci a frase. Citei-a aos outros, tantas e tantas vezes sem conseguir explicar o seu verdadeiro alcance. Citei-a para mim, tantas e tantas vezes sem perceber onde ir procurar a qualidade de um tempo que me curasse as feridas.

Em todos os momentos verdadeiramente importantes da nossa vida podemos ser confrontados com uma encruzilhada: somos desafiados à radicalidade da mudança, mas escolhemos o adiamento confortável, alegando que o tempo propício não é este; somos convidados a estender os braços que promovem a paz, mas entendemos não o fazer, argumentando que o tempo propício não é este; a alma pede-nos o choro de um luto, mas atiramo-nos à folia, justificando que o tempo propício não é este; o ânimo puxa-nos o olhar para a frente, mas quedamo-nos no passado, defendendo que o tempo propício não é este.

O tempo pode não ser mais do que a duração ocupada por acontecimentos. O tempo pode ser uma venda nos olhos ou no coração que nos impede de discernir, de avançar, de parar, de recuar. O tempo pode ser uma época, um período, um instante, durante o qual, sentados chorosos à janela do destino ou do que somos, vemos a vida passar por nós. Mas o tempo pode ser um espaço de acção e de juízo, de introspecção e mudança, de partilha e de rompimento. O tempo, desde que saibamos o que fazer, e quando fazer, é o lugar geométrico da qualidade que fará de nós pessoas inteiras, apesar de todos os desaires. O desafio é tremendo, a prática é diária, sem direito a mais desfalecimento do que é condição humana.

Sabes, porque estás nesse sítio onde não há manhã nem tarde, todos os dias escutas o que exprimo na fórmula certa de uma oração. Todos os dias percebes o que ressalta dos meus pensamentos confusos. Todos os dias me ouves pedir discernimento e força, porque serão esses os dons que me permitirão encontrar a qualidade do tempo que me é oferecido pelas circunstâncias. Todos os dias, na eternidade do colo que encontras em Nossa Senhora, derramas sobre nós o pó dos anjos, o pó do Amor e da Fé. Assim o saibamos apanhar, porque com ele vem a plenitude.

Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu:

Tempo para nascer e tempo para morrer,


tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou,


tempo para matar e tempo para curar,


tempo para destruir e tempo pra edificar,


tempo para chorar e tempo para rir,


tempo para se lamentar e tempo para dançar,


tempo para atirar pedras, e tempo para as ajuntar,


tempo para abraçar e tempo para evitar o abraço,


tempo para procurar e tempo para perder,


tempo para guardar e tempo para atirar fora,


tempo para rasgar e tempo para coser,


tempo para calar e tempo para falar,


tempo para amar e tempo para odiar,


tempo para a guerra e tempo para a paz.

(Eclesiastes, 3, 1-8)

Hoje, como há dezassete anos, permanecem vivas as três linhas do fado que te pertence.

Na Sua bondade sem fim

Quis Deus olhar para mim

Dar-me um pouco do que é Seu...

O tempo não cura nada, o que cura é a qualidade do tempo.

JdB

6 comentários:

  1. Grande beijinho. pcp

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  2. Um beijo soprado iluminado pelo pó do anjo.

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  3. Querido João,
    Graças a Deus sinto-me também bafejada com esse pó dos Anjos.
    Obrigada por nos lembrar a "qualidade do tempo".
    Beijinhos

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  4. Que post profundo e lindo, João. Obrig. por partilhar connosco esta reflexao, MZ

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