24 outubro 2011

Vai um gin do Peter’s?


Woody Allen está de volta com tudo o que lhe é próprio, desde a paixão pela Cidade das Luzes, a uma ideia muito original e figurativa, que se desdobra num argumento poderoso: «MEIA NOITE EM PARIS»(1). Ali sobrevoamos os monumentos da capital francesa e exploramos os seus recantos de charme, na perspectiva de um parisiense boémio ou de um estrangeiro totalmente aculturado. Um passeio que mergulha na história riquíssima do que já foi o epicentro da cultura ocidental (até à Segunda Guerra Mundial).


O filme abre com uma visita panorâmica pela cidade, sob o azul grisalho do céu de Paris, terminando numa noite gloriosa, com milhentas luzes a fervilhar na escuridão. Lindo. Depois, em ecrã escuro, ouvimos um diálogo carregado de humor e ironia, que só podia ter sido escrito por W.Allen. Reunidos numa cidade apaixonante para ultimarem os preparativos do seu casamento, o desencontro de ideias entre os noivos não nos deixam quaisquer dúvidas sobre a distância imensa que os separa. Transcorridas aquelas primeiras deixas, já nenhum espectador partilha do equívoco que ainda se arrasta na cabeça dos noivos, habituados a uma proximidade superficial e ilusória. Tudo típico das sociedades ricas, em concreto da americana, onde a gente nova costuma ter liquidez suficiente para projectar uma vida a dois. Só que a vida contenta-se pouco com contas bancárias folgadas, como nos mostra o realizador. 

O protagonista, que no início apenas conhecemos pela voz, tem o timbre inconfundível de W.Allen, quase numa clonagem do omnipresente realizador-argumentista, mas com bastante menos idade. Até nisso, W.Allen se mantém igual, não prescindindo de marcar presença nos filmes que assina.

Voltando a Paris: de um lado, um talentoso argumentista de Hollywood a querer ser escritor (Gil, o noivo), do outro uma família (da noiva) endinheirada da classe média americana, da ala republicana mais radical, tea party ao vivo. Genericamente provinciana e incapaz de alterar um milímetro o seu comportamento consumista e de gosto duvidoso. Sempre deslumbrada pela cultura que não tem, nem consegue interiorizar. Sempre vidrada num património histórico que lhe é e será sempre estrangeiro (na acepção pura e dura de Camus). Por isso, confunde, facilmente, erudição a metro com o saber profundo, normalmente menos extrovertido. O «Monsieur pedante» – na alcunha cirúrgica atribuída a Paul pela personagem encarnada por Carla Bruni – personifica esse novo-rico intelectual que, como em todas as derivações do novo-riquismo, transborda de exibicionismo oco e auto-suficiente. Já o simpático clono de W.Allen (o tal Gil) pretende ser a encarnação do artista genuíno, muito conhecedor de História, apaixonado pela Cultura e pelos grandes fazedores de Arte. Só que é tudo menos simples do que isto, ou o realizador não fosse quem é!

Os quatro norte-americanos em Versailles, com Monsieur Pedante ao comando

Afinal, Gil até será o mais enredado em equívocos e preconceitos, agravados por uma atitude falaciosa, que lhe pode comprometer o futuro. Aqui, W.Allen revela-se no seu melhor, acutilante na auto-avaliação. Sem poupar críticas ao seu alter-ego, nem a ninguém, embora a exploração do ridículo se concentre nas personagens mais pretensiosas e arrogantes. Para essas, tolerância zero. Mas ninguém está isento de erros. Só que a cada qual o desafio que lhe é devido, à medida da sua personalidade e dos objectivos mais profundos…

Às badaladas da meia-noite, qual conto de fadas do avesso, a realidade transfigura-se e, numa antiga ruela parisiense, surge um calhambeque reluzente. Recuamos, animadamente, para os anos 20, a época adorada por Gil. O sonho sobrepõem-se à realidade e os desejos irrealizáveis de Gil rolam pela calçada húmida, ao seu encontro, sob a sonoridade mágica do mesmo sino que, aos outros, anuncia um novo dia. Mas para o insatisfeito Gil um novo dia seria pouco… Pelo que lhe é oferecida uma segunda vida. Mas será?...


Gil junto ao Sena, sob o céu da tela de Van Gogh - «Starry Night» (1889),
que foi pintada no hospício de Saint-Remy. As 11 estrelas evocam a criação da abóboda celeste, referida nos Génesis (37, 9)


Como sempre, W.Allen joga maravilhosamente com os exageros das suas metáforas, conseguindo pelo humor alimentar hipóteses que roçam o estapafúrdio. Só que carregam tanto sonho comum, tanta miragem partilhada por multidões, que as reconhecemos quase como familiares, apesar da inverosimilhança. Acabam por compensar em nexo psicológico o que lhes falta em factualidade. Quem não conhece gente revivalista, sobretudo à medida que se vai envelhecendo? Mas é tão raro esses apaixonados por outros tempos perceberem o irrealismo da sua posição, que tende a subestimar as omissões e fraquezas desse outro período, dramaticamente desfalcado de realidade, desde que foi banido do presente! Até nos aspectos mais comezinhos, redunda em ilusão escapista. Quem, por exemplo, abriria mão das possibilidades tecnológicas dos nossos dias –da saúde, às telecomunicações, passando pela facilidade em viajar – para apenas nomear o menos importante da vida? Aliás, uma blague à volta da falta de medicamentos (note-se que W.Allen é hipocondríaco) nesse passado maravilhoso, ajuda o jovem escritor a cair na real, decepcionando-se com um século onde morrer novo de tuberculose era a regra. A ironia lembra aquele provérbio chinês: Pensa bem em tudo o que pedes na oração, porque pode vir a acontecer-te.


Apesar de tudo, quem duvida que seria fascinante receber dicas de Hemingway, conhecer Fitzgerald e o seu círculo de amigos, frequentar festas animadas pela voz de Cole Porter, ao piano? Chegar ao cúmulo de ouvir conselhos de Gertrude Stein e esbarrar com E.M.Foster? Ou numa noite da neura ser consolado pelo esfusiante Salvador Dali e dar sugestões proféticas a Buñuel? Percebe-se que o primeiro embate nos Vintes tenha sido inebriante: lustres, flutes de champanhe, boquilhas arrastadas, lamés faiscantes, longos colares de pérola, diademas coloridos. Sobretudo, ritmo contagiante ao piano...  

Rodeado de miúdas da geração das nossas avós!


Uma constante nesta comédia mordaz dá que pensar: raros são os que apreciam a sua época, isto descontando os ignorantes e insensíveis que se satisfazem com dólares e existências padronizadas. Todos, a começar pelos grandes artistas, mitificam outro período do passado. Esse sim, memorável! Os dos Anos 20, a Belle Époque; os da Belle Époque, o Renascimento… Difícil é aceitar o presente. Lidar com a realidade que nos toca, aqui e agora. Quando Gil consciencializa essa tentação vã, de algum modo reconcilia-se com o presente ou, ao menos, cede-lhe. Mas nem todos conseguem dar esse passo de coragem, pelo que regridem para a fantasia da sua Idade d’Ouro. Nada mais etéreo. E por isso tão tentador! Paradoxalmente, coube a Ms.Pedante diagnosticar a atitude de fuga contida na obsessão de Gil pelos 20s. E disse-lho taxativamente: «Nostalgia is denial - denial of the painful present... the name for this denial is golden age thinking - the erroneous notion that a different time period is better than the one ones living in - its a flaw in the romantic imagination of those people who find it difficult to cope with the present.»


Para completar a narrativa, ao jeito circular que W.Allen aprecia, não são só os contemporâneos a interagir com o passado. Também os antigos se intrometem, aliás com acerto, no séc. XXI. Assim acontece com Hemingway, que dá um alerta ao jovem escritor, demasiado enlevado nas suas viagens aos cofres da história para enxergar a vida real. Tocava-lhe um dia-a-dia desengraçado, numa suite do Hotel Bristol, com uma loira que, em Paris, torrava os dólares do papá como se estivesse na sua terra. Apenas com a diferença de mais trânsito cá do que lá (cito a loira), uns antiquários, uns palácios, umas telas e umas estátuas hiper badaladas… Quanto ao mais: piscinas de hotel e room service iguais aos dos States.

Outra intromissão divertida vem descrita num calhamaço bolorento, que Gil desencantou nas margens do Sena. Quem decifra a blague – ao protagonista e aos espectadores– é a guia do Museu Rodin (Carla Bruni), traduzindo ao norte-americano a passagem onde entra o seu nome, referido por uma musa de Picasso.



Outras constantes em W. Allen: só por coincidência, o que parece, é. Só por casualidade, as relações fáceis e confortáveis resultam. Só por sorte, as pessoas muito controladoras conseguem agarrar a realidade fugidia e indomável. Lembrando Camões: «Todo o mundo é composto de mudança», mas em W.Allen a vida esvai-se à velocidade dos F16. Um aviso que nos pode ser muito útil, se nos despacharmos.




Maria Zarco

(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
MIDNIGHT IN PARIS
Título traduzido em Portugal:

MEIA-NOITE EM PARIS
Realização:
Woody Allen
Argumento:
Woody Allen
Produzido por:
Gravior Productions, Televisió de Catalunya, Mediapro
Duração:
94 min.
Ano:      
2011
País:
EUA, Espanha
        Elenco:

Owen Wilson      (Gil, o noivo e candidato a escritor)
Rachel  McAdams (Inez, a noiva)
Kurt Fuller           (pai de Inez)
Mimi Kennedy    (mãe de Inez)
Marion Cotillard (diva dos Anos 20) 
Carla Bruni          (guia no Museu Rodin)
Yves Heck             (Cole Porter)
Alison Pill              (Zelda Fitzgerald)
Corey Stoll             (Ernest Hemingway)
Principais locais
das filmagens:

 

Paris e Versailles

Site oficial:

http://www.sonyclassics.com/midnightinparis/


Filme de abertura do Festival de Cannes em 2011




3 comentários:

  1. Gostei muito do filme. Vê-se bem, maravilhosamente bem dirigido, maravilhosamente bem interpretado, uma história deliciosa e popular(eu também escolheria voltar no tempo a essa época, curiosamente). Até o "atontado" (expressão da minha Mãe)do Owen Wilson estava perfeito. Parece um clássico. Acho que o WA se tornou um bom realizador de belíssimos clássicos. Perdeu uma certa loucura e histeria que o caracterizava na sua fase nova-iorquina. Nisso é pena, porque talvez se tenha desvirtuado (eu adorava os filmes de NY). Por outro lado, faz clássicos deliciosos, com o seu toque único, e bons para as massas (e para as cidades!). Bom filme! Bjs. pcp

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  2. É mesmo como dizes, um filme q. se vê maravilhosamente, com um cenário de sonho e um humor do melhor, à Woody Allen quando está inspirado e menos cínico. Thanks pelas tuas achegas óptimas sobre o filme, MZ

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  3. Can't wait to see this film! Thanks, PO

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