09 abril 2012

Vai um gin do Peter’s?

A sugestão de hoje é um filme de três minutos, que segue no final do gin. Vencedor em Cannes, na categoria das curtas-metragens, «PORCELAIN UNICORN»(1) explora uma metáfora linda, das intemporais, que percorre intacta toda uma vida, da infância até ao alvor dos cabelos brancos.
Decorre num período intencionalmente hostil, a Segunda Guerra Mundial, na situação mais extrema – o ápice da perseguição nazi aos judeus. Torna-se especialmente tocante por decorrer no aconchego de casa de família, simples e acolhedora. Ainda por cima com crianças amorosas, expoentes da inocência. Porém, simbolicamente, exibem as marcas de pertença a pólos opostos: ela com a cruz de David bordada na braçadeira, ele a imitar as milícias do Reich replicando o mundo adulto que lhe era próximo…
Cinge-se a poucas personagens. Recorrendo a actos por demais conhecidos, como a crueldade selvática das SS, oscila entre dois tempos q.b. distantes em termos cronológicos, mas cruciais enquanto ciclos da vida humana. E centra-se num símbolo forte: um unicórnio de uma beleza nívea e frágil, a caber na palma de uma mão.  


Enquanto brincava aos soldados, o rapazinho descobriu uma

refugiada a brincar na clandestinidade. Mas, ao invés dos

soldados, a sua era uma missão de paz... 

O galardão assinala-o como o Vencedor de uma Competição muito sugestiva para cinema, promovida pela Philips, chamada Conte à sua Maneira («Tell It Your Way»). De facto, os três minutos voam nas mãos do realizador Keegan Wilcox, expondo sugestivamente a semente de bem que, anos mais tarde, cresceu e pôde vir em desforra de um tempo que fora prisioneiro do mal total. Mas nem isso é completamente exacto, pois mesmo durante esse período de trevas tinha havido espaço para uma intervenção pessoal, minúscula, embora muito eficiente, à medida da pequena grande-criança que a protagonizou! Demonstrou como há sempre uma aberta mínima para o exercício da liberdade pessoal, mesmo em face das piores situações, permitindo mitigar (ainda que ligeiramente) a fúria do ódio em acção.
O gesto heróico da criança é expressivo da importância de cada opção, incluindo a mais ínfima, para definir ou consolidar um carácter. Porque a identidade humana permanece em devir, desde o nascimento até à morte. Aquele menino imberbe é a personificação da pessoa que escolhe, todos os dias, ser movida pela bondade e pela coragem, apesar da coragem que isso implica.




Ora, a memória de um bom homem ajuda a que o tempo lhe seja favorável, enquanto guardiã da percentagem de bem que se preserva, ao longo da vida. Nessa arca de registos passados, o menino já crescido conseguiu reter o melhor daquele episódio tremendo da infância. Assim, de um mal horrendo foi possível extrair algum bem. Porque o seu tempo vivido na atenção aos outros, levou-o a querer repor os estragos (possíveis) do tal outro tempo de bestialidade. A ponto de pouco ou nada se ter perdido, naquela voragem devoradora de um antigamente sangrento e desvairado.
Sem me deter em pormenor sobre a simbologia do unicórnio, vale a pena sublinhar, em traços gerais, a riqueza mitológica deste cavalo branco de chifre proeminente, com poderes mágicos. Na tradição ancestral, este ser feroz e indomável significava o poder da alma e a junção de opostos, pelas diferentes partes de animal que reunia (corpo de cavalo, patas de gazela, rabo de leão, chifre de antílope). A sua captura envolvia um ritual especialíssimo, em que uma jovem seria a única presença capaz de o atrair e domar. Sob o efeito da sedução feminina, o unicórnio ficaria então à mercê dos caçadores. Não por acaso, foi o símbolo exibido no final do grande filme «Blade Runner» (de Ridley Scott, 1982), quando as dúvidas sobre quem era ou não replicant estavam ao rubro e faltaria ainda capturar um… Na tradição cristã converteu-se em símbolo de pureza, representação de Maria e expressão da vida eremita e monacal.   


Na curta-metragem, o sentido original do unicórnio reinventa-se e passa das mãos da menina judia para o rapaz alemão, sendo depois sacrificado ao serviço de uma manobra de diversão salvadora. Mas ressuscitará, oportunamente, para celebrar a nova era de paz, na reconciliação posterior de dois mundos que pareciam irreconciliáveis.
Comparável à delicadeza da amizade –impotente perante a força bruta das armas– a porcelana quebradiça reflecte aqui a vitalidade intemporal dos valores maiores, cuja beleza insiste em ser indefesa, demasiado acessível, maximamente generosa. E se a vida está repleta destas riquezas subtis que, sob um aspecto precário, escondem um poder infinito, eterno! Das que só o coração reconhece! Que passam, subtilmente, de geração em geração, de coração a coração… acredito que até ao fim dos tempos. Por isso tem tanto a ver com este tempo – BOA PÁSCOA a todos.



Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
THE PORCELAIN UNICORN
Realização:
Keegan Wilcox
Argumento:
Keegan Wilcox
Duração:
3 min.
Ano:      
2010
País:
EUA
        Elenco:

Clayton Brown (um dos miúdos)
Ron Carlson      (soldado nazi)
John C. Crow     (soldado nazi)
Fiona Perry        (miúda judia)

Local das filmagens:
Los Angeles - Califórnia
Prémios:
CANNES: Vencedor da Competição da Philips Tell It Your Way, na categora das  curta-metragens.

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